A DESPEDIDA
Mariana passava todos os dias em frente àquele prédio.
Pintado de azul e branco, o edifício de dois andares abrigava uma instituição espírita que fazia obras de caridade em boa parte da cidade.
Ela tinha sofrido uma grande perda recentemente e seu coração estava cheio de tristeza e amargura.
A Instituição se chamava “Casa de Orações e de Esperança” e algumas de suas amigas lhe tinham dito que, ali, era um lugar de paz, estudos e reflexões e que era possível até mesmo ter notícias de algum parente que já não estivesse mais nesta vida.
Quem sabe, ali, ela não encontrasse algo que lhe amenizasse o sofrimento e acabasse com a infindável dor que lhe aprofundava o coração?
Mariana tinha apenas vinte e seis anos e, com dois anos de casada, seu marido fora assassinado barbaramente em um assalto sendo que, afinal, os bandidos não lhe levaram nada, a não ser sua vida.
Seu marido, Gabriel, era um engenheiro formado recentemente e estava apenas começando a sua vida profissional. Deixou um filho com seis meses de vida e que, portanto, jamais conheceria o seu pai. A criança se chamava Roberto, como o seu avô paterno, também já falecido.
Uma história triste!
Mariana era professora de inglês em uma escola particular e não podia deixar transparecer a sua tristeza diante de seus alunos adolescentes, embora todos soubessem do trauma pelo qual ela tinha passado.
Ela conhecera Gabriel ainda criança, ele com doze e ela com nove anos. Seus pais eram vizinhos e amigos e os dois passaram a infância brincando juntos, estudaram na mesma escola e, durante a adolescência o amor despertou em ambos e, então, perceberam que tinham nascido um para o outro.
A escola em que estudavam, quando adolescentes, se chamava Padre Coelho de Souza. Era um prédio grande e tinha uma árvore secular em seu pátio.
Ali, um dia, usando um canivete de Gabriel os dois desenharam, no tronco da árvore, dois corações entrelaçados com seus nomes inscritos. Mariana escreveu Gabriel e Gabriel escreveu Mariana. A intenção era completar com a frase “amor eterno”.
Acontece que a campainha tocou e eles tinham, naquele momento, uma temível prova de matemática, sendo assim, não tiveram tempo de completar a frase que ficou “amor eter..” Incompleta.
Os dois nunca se lembraram de voltar lá e completar a inscrição que está assim até hoje, escondidinha, no tronco da gigantesca árvore.
Foram felizes por muito pouco tempo até aquela noite fatídica em que Gabriel voltava do trabalho e parou o carro em frente de sua casa enquanto abria o portão da garagem.
Foi o tempo suficiente para os marginais perpetrarem a sua maldade.
O rapaz não reagiu, mas, mesmo assim, um deles disparou dois tiros contra o peito de Gabriel que teve morte instantânea. Sequer teve a chance de ver a família por uma última vez.
Os assassinos foram presos e condenados, mas isso não aliviou a dor da jovem mulher. Ela chorava todos os dias e somente a presença do pequeno Roberto lhe dava coragem para seguir em frente. Esquecer Gabriel ela não conseguia, afinal, foram muitos anos de convivência e apenas dois de casamento.
Telma era uma das melhores amigas de Mariana e, com muita frequência, ia visitá-la e tentar distrair a amiga.
Sendo frequentadora assídua, há muitos anos da “Casa de Orações e de Esperança”, Telma, de vez em quando convidava a amiga para ir com ela, sem compromisso. Ela gostava do lugar, dizia que ali só havia pessoas amigas que se importavam com o próximo e que, talvez ela gostasse.
De fato, de tanto Telma insistir, Mariana um dia aceitou o convite.
Deixou o pequeno Roberto na casa de seus pais e, embora um pouco desconfiada, acompanhou a amiga em uma de suas idas ao local.
Mariana, logo na entrada, ficou surpresa com a gentileza das pessoas que a recebiam. Deixavam-na inteiramente à vontade e, no primeiro dia, ela quis apenas observar o que acontecia em volta.
Telma não insistia em nada e apenas convidou-a para participar de uma reunião plenária que iria ocorrer naquela noite com alguns palestrantes.
Um senhor, de nome, Francisco Caldeira, aparentando uns sessenta anos, era o principal palestrante e o tema era a psicografia.
Ele falava de casos em que pessoas encontravam conforto nas sessões de psicografia porque, afinal, conseguiam informações de seus entes queridos que haviam partido.
Aquilo chamou a atenção de Mariana, mas ela, simplesmente, não acreditava em nada do que via ou ouvia.
Como seria possível alguém falar com os espíritos ou mesmo receber deles alguma mensagem e, como ela iria saber se era mesmo o seu Gabriel?
Depois de algumas idas ao local, Mariana foi se interessando pelas sessões de psicografia até que, incentivada por Telma, resolveu assistir uma delas.
Era um sábado, à noite. Caíra uma chuva fininha o dia todo e fazia um frio de doze graus.
No local havia umas quarenta pessoas, todas ávidas por receberem alguma notícia de um parente que tinha partido.
Mariana e Telma sentaram-se bem próximas, porém, na última fileira de cadeiras.
Era a primeira vez que Mariana ia ali e o objetivo era observar apenas.
Francisco Caldeira, em um dado momento, repentinamente, começou a escrever freneticamente, sem parar, de forma intensa. O homem não parava um só segundo e depois de uns dez minutos, fez uma pausa como quem procura ar e disse:
– Tenho aqui uma mensagem para uma pessoa. Se quiser, não precisará se identificar.
Francisco, então, começou a leitura.
“Minha querida Mariana!
Sinto muita saudade de você e de nosso Robertinho. Sei que ele está bem de saúde e bem cuidado, mas estou preocupado com você pois sei que está sofrendo muito por minha causa.
Quero lhe dizer que estou bem, fui muito bem acolhido neste plano e estou muito feliz. Tudo aqui é maravilhoso e estou no meio de espíritos bondosos que me ensinam o que fazer para alcançar a minha evolução.
Saiba que não esqueci de você e sei que você não se esqueceu de mim, no entanto, a sua vida tem que prosseguir, para o seu bem e para o bem de nosso filho.
Por isso, quero lhe dizer que não precisa mais se preocupar comigo. Sei que a saudade é muito grande, mas, por favor, siga a sua vida em paz e procure encontrar a felicidade porque você foi a pessoa mais importante que cruzou o meu caminho e, saiba, nós precisávamos fazê-lo porque faltava um lapso de comprometimento de nossa parte, de um para com o outro, para que nossos destinos se selassem para toda a eternidade.
Seja feliz, meu amor e cuide do nosso filhinho.
Ah! Quase me esqueci. Quero apenas lhe pedir uma coisa: quando você puder, volte àquela árvore, lá da escola, e complete a frase para que o nosso amor seja eterno de verdade.
Mariana irrompeu em lágrimas e seu rosto passou a transmitir a mesma paz que ela sentia quando estava junto do seu Gabriel.
No dia seguinte, com a permissão do diretor da escola, ela voltou à árvore e, com o mesmo canivete que ela guardara do seu amado, terminou a frase.
Hoje é possível ver, no tronco daquela árvore, dois corações entrelaçados com os nomes Mariana e Roberto e a inscrição “amor eterno”.
A ÚLTIMA ESPERANÇA
Era o final do século 18. Nos pampas do rio Grande do Sul, a manhã cinzenta e o vento minuano soprando fortemente anunciavam que tempos muito frios estavam chegando. A paisagem, escondida sob a neblina espessa, mal deixava ver a beleza daqueles campos sem fim. Um arroio deslizava preguiçosamente a alguns metros dali, onde os peões matavam a sede.
Ao calor de uma fogueira, Ezequiel atrela o seu belíssimo cavalo baio, marrom com manchas brancas espalhadas pelo corpo. É um animal imponente, forte e rápido. Adequado para grandes cavalgadas pela região.
Ezequiel sorveu o último gole de seu chimarrão, apagou a fogueira cuidadosamente, ajeitou o poncho que o protegia do frio de oito graus negativos, deu uma última arrumada no espesso bigode negro e montou em seu belo Brioso, nome mais que adequado ao valente companheiro do gaúcho. O dia estava apenas começando e eram muitos os cavalos que Ezequiel tinha que arrebanhar no pasto e levar para a fazenda “Última Esperança”, belíssima propriedade de seu patrão Anastácio, homem tão rico quanto mal para com seus empregados e escravos, especialmente com estes últimos.
A tarefa de Ezequiel não era das mais fáceis, mas ele era um peão experiente e, apesar do minuano e do frio cortante que quase lhe dilaceravam o rosto, o bravo gaúcho dos pampas não arrefecia um só momento até reunir o último animal que, agora, ele tocava serenamente em direção a “Última Esperança”.
O valente peão tocou os animais em direção ao curral novo e se dirigiu para o fogo de chão que ardia ali próximo e onde uma gaita tocava velhas canções do cancioneiro gaúcho. O cheiro da carne assada corria solto e os homens serviam-se de suculentos pedaços de costela.
Sentado em um canto, afastado dos empregados da fazenda, um negrinho, acocorado, tremia de frio e, faminto, olhava, com um esticar de olhos, os belos pedaços de costela assando ao fogo.
Ezequiel era um homem bom.
Levantou-se, empunhou a sua linda faca, cortou um belo pedaço de costela e o entregou ao negrinho.
Emiliano – assim se chamava o negrinho – olhou agradecido para aquele homem à sua frente e saiu em disparada para dividir o pedaço de carne com os seus irmãos.
Anastácio era um homem mal.
Do portal da bela casa da fazenda, o fazendeiro tudo observou e não gostou nem um pouco decidindo que iria punir alguém. Não poderia fazer nada contra Ezequiel porque ele era um dos seus melhores peões, então, decidiu vingar-se no pobre Emiliano.
O dia seguinte mal amanhecera e Anastácio, de chicote em punho usando vistosas bombachas, camisa grossa para protege-lo do frio e um lenço vermelho em volta do pescoço, gritava alto e raivosamente da soleira da varanda da bela casa.
– Emiliano! Emiliano!
O negrinho apareceu correndo, usando umas calças velhas, sujas e com grandes rasgões no joelho. Uma camisa igualmente velha e puída que não o protegia, nem de longe, do frio terrível que fazia naquela manhã do rigoroso inverno gaúcho.
– Sim, meu patrão! – disse o negrinho.
Não era mais do que um garoto. Tinha catorze anos, magrinho, por desnutrição, analfabeto e nenhuma expectativa de vida.
– Quantas vezes vou ter que te chamar, moleque safado? – esbravejou o cruel patrão.
– Me desculpe, patrão.
– Tem doze cavalos sumidos lá pelos campos. Trata de ir atrás e me trazer todos aqui antes do anoitecer senão vou arrancar o teu couro por chibatadas – disse Emiliano e, a seguir, estalou o chicote no ar como que açoitando o pobre menino para cumprir a sua tarefa.
Anastácio ficou ainda alguns minutos tomando o seu chimarrão enquanto observava o pobre negrinho desaparecendo no nevoeiro. Não eram mais do que seis horas da manhã.
Ezequiel, que já estava de pé quando o patrão começou a gritar, observou toda a cena e esperou que o patrão resolvesse entrar. Colocou os arreios em Brioso e partiu em disparada na direção em que o negrinho tinha ido.
Em pouco tempo encontrou o pobre menino, descalço e tiritando de frio. Chorava de fome, de frio e de desespero, pois sabia que não iria conseguir reunir a tropa que estava perdida, ainda mais, a pé.
Ezequiel aproximou-se calmamente do menino. Apeou, deu-lhe um pedaço de pão e uma manta para amenizar o frio e, após o menino matar a fome, disse-lhe:
– Vi o que se passou lá na fazenda. Não te preocupes, pois vou te ajudar na busca aos animais.
– Obrigado “seu” Ezequiel, mas se o patrão souber ele me mata de tanto me bater.
– Não tema. Ele não vai saber.
O peão montou em seu cavalo e ajudou o menino a montar na garupa.
Experiente, o peão encontrou todos os animais em pouco tempo e ajudou o negrinho a levá-los até bem próximo da fazenda.
– Daqui tu segues só, pois não devemos deixar que o patrão saiba que eu te ajudei.
Feliz da vida, Emiliano chegou tocando os animais. Montava, em pelo, o cavalo da frente e conduzia com extrema perícia a pequena tropa para o curral.
Anastácio olhava tudo sentado em sua cadeira de balanço enquanto tomava o seu chimarrão. Ficou satisfeito porque os cavalos foram recolhidos, mas o seu ódio pelo negrinho escravo aumentou ainda mais.
Os dias passavam e os castigos de Anastácio em Emiliano tornavam-se cada vez mais frequentes e ninguém podia fazer nada, pois o homem era muito poderoso e contavam histórias que diziam que ele já tinha se livrado de muitos inimigos que sumiam misteriosamente.
Mas Emiliano tinha uma habilidade extremamente útil. O piá sabia tratar de mordidas de cobras e a região era infestada de cobras coral verdadeiras.
O menino tinha observado que um dos cavalos da fazenda fora picado seis vezes por cobras corais verdadeiras e tinha sobrevivido. Curioso, imaginou que o animal agora teria alguma “proteção” em seu sangue contra o veneno daquele réptil e achou que, se, de alguma forma, outro animal fosse picado e recebesse rapidamente um pouco do sangue do equino, poderia escapar.
O que o jovem escravo não sabia era que tinha ocorrido um processo de imunização no cavalo que, após sucessivas picadas por aquela espécie de cobra, produzira, realmente, anticorpos contra o veneno.
A fazenda também tinha criação de ovelhas e, um certo dia, um peão chegou com um desses animais na garupa do cavalo dizendo que ele tinha sido picado por uma cobra coral verdadeira. O réptil, ele tinha matado e trazido em uma sacola como prova.
Emiliano ouviu a estória e percebeu que o animal iria morrer. Então, pediu autorização ao peão da fazenda para tentar injetar o sangue do cavalo imune nas veias da ovelha.
Como o patrão não estava o peão resolveu autorizar.
Usando uma seringa rudimentar o garoto retirou sangue do cavalo e aplicou no pescoço da ovelha. O animal resistiu ao primeiro dia e, no dia seguinte, o garoto repetiu a injeção de sangue equino. Repetiu esse processo por quatro dias seguidos e, no quinto dia, o animal estava de pé.
Quando Anastácio chegou deram-lhe a notícia, mas ele não se animou nem um pouco, pelo contrário, aplicou tremenda surra no negrinho que o deixou desfalecido, amarrado a um tronco de árvore. Só permitiu que o soltassem no dia seguinte.
O menino quase morreu e, como tinha ficado bastante debilitado, o patrão deixou-o em paz por algum tempo.
Passados alguns meses, Anastácio saiu com a família para um passeio a cavalo pelos pampas, aproveitando o agradável clima de primavera que fazia. Sentou-se na relva com a esposa e a única filha, Gabriela, de apenas dez anos.
De repente a menina deu um enorme grito de dor. Anastácio viu quando a bela cobra coral fugiu pelo capim deixando a sua filha aos prantos.
Em pouco tempo a menina estava com as pupilas dilatadas, a vista turva, movimentava as pupilas com visível dificuldade e tinha que se esforçar muito para respirar.
Naquele momento, o orgulhoso fazendeiro não teve dúvidas. Montou em seu cavalo, colocou a criança em sua cela, à sua frente, e cavalgou sem parar em direção a Última Esperança. De fato, ele tinha uma última esperança: fazer com o que Emiliano repetisse o milagre feito com a ovelha e pudesse salvar a sua filha.
Chegando à fazenda, mandou chamar o negrinho.
O garoto chegou assustado, com medo de apanhar de novo, mas o que ele viu foi um homem desesperado diante de uma criança deitada na cama, respirando com grande dificuldade, os olhos fixos no teto da casa e prestes a falecer.
Anastácio olhou para o escravo e, humildemente, com lágrimas nos olhos disse ao menino:
– Aplica o mesmo remédio em minha filha, por favor.
O garoto não perdeu tempo e rapidamente, foi até o curral, retirou o sangue do animal e voltou. Aplicou o conteúdo na veia da menina que, aos poucos, começou a respirar melhor.
Após três dias do processo, a menina já estava de pé e começava a conversar normalmente.
Anastácio, agora um homem humilde, aproximou-se do jovem escravo e disse:
– Tu, a quem eu tanto maltratei, eras a minha última esperança de salvar a minha filha. Peço-te que me perdoes. Podes me pedir o que quiseres e eu te darei.
– Minha liberdade! – disse o garoto.
– Podes ir para onde quiseres, agora és livre. – disse o outrora arrogante Anastácio.
DAVI
Josefina Teresa Souza era uma mulher humilde.
Analfabeta, nunca pusera os pés em uma escola, mas sabia fazer conta direitinho e desenhava o seu nome de maneira aceitável.
Com seis filhos e sem marido (Tião morreu aos quarenta e dois anos devida a uma picada de cascavel), a mulher trabalhava de sol a sol e, tinha que contar com a ajuda dos filhos para conseguir comida, mas havia uma coisa da qual ela não “abria mão” de jeito nenhum: todos tinham que ir pra escola.
Os filhos formavam uma verdadeira escadinha: Lunita, 18 anos, era a mais velha. Depois vinham Leocádio de 17, Davi de 15, Bernardo, 13, Laura de 11 e Ademar de 9 anos.
Todos sabiam ler e escrever. Aprenderam na escolinha da professora Cleta, ali mesmo, em São Belísio, um lugarzinho miserável com apenas 12 casas, perdido no interior do nordeste brasileiro onde a fome, a falta d’água e a pobreza se faziam presentes todos os dias do ano.
Nem padre havia ali!
As fontes de renda eram uma pequena roça de macaxeira e alguns legumes cuja colheita era tão incerta quanto o futuro daquela família, mas Josefina tinha fé. Ela acreditava que, algum dia, alguma coisa iria acontecer e mudaria a vida de todos.
Na verdade, dentre os filhos, o único que tinha ambição era Davi que, de vez em quando falava em ir embora para uma cidade maior, estudar mais e, quem sabe, até conseguir um emprego!
O mais incrível era que aquele menino queria aprender a falar inglês, coisa que Josefina nem sabia o que era. Para ela, todo mundo falava português e era daquele jeito dela mesmo, mas, como os meninos estudavam e conversavam com ela sobre o que aprendiam, ela estava se acostumando com as novas ideias lentamente.
A professora Cleta não tinha muito o que ensinar, porque também, pudera, ela sabia muito pouco, mas a mãe desconfiava que quem tinha falado essa história de falar inglês ao Davi tinha sido ela e, se foi assim, então deveria ser uma coisa boa.
De fato, um dia, Davi disse para a sua mãe que iria conhecer Buriti, uma cidade de 80 mil habitantes que ficava a alguns dias de distância em lombo de burro. O problema era que ele não tinha um burro e, então, resolveu ir a pé mesmo.
O rapaz não tinha ideia de quanto tempo teria que andar e, comida, ele levou alguns pedaços de macaxeira cozida enrolada em um pedaço de pano e uma garrafa com água.
O jovem se despediu dos irmãos e de sua mãe e partiu.
Eram seis horas da manhã e a família estava de pé, na porta do casebre, vendo o destemido rapaz ficar bem pequenininho até desaparecer na poeira do sertão nordestino.
Josefina era forte e acreditava naquele menino. Achava que ele era inteligente o suficiente para se virar em uma cidade grande e, quem sabe, talvez um dia tivessem boas notícias dele.
Sessenta quilômetros talvez não sejam uma longa distância para alguns, mas, para quem não tem nada a não ser esperança é algo inconcebível, inatingível mesmo.
Mas não para Davi.
Ele tinha conseguido chegar a Buriti. Faminto, sujo e cansado e, sem ter onde dormir, achou abrigo em uma praça.
Um guarda municipal o acordou de manhã. Ele se chamava João e, inteligente e caridoso como era, logo entendeu que aquele jovem não era dali e que precisava de ajuda.
– Quem é você rapaz? Onde mora?
– Meu nome é Davi, venho de São Belísio e eu quero estudar.
Pronto! Isso selou o seu destino.
A vida era dura em São Belísio e não havia tempo para se ficar lamentando qualquer coisa que fosse. A comida tinha acabado, a água já estava quase no fim, a colheita naquele ano ia dar muito pouco e o jeito era procurar alguma coisa pra caçar, pegar água na cacimba e rezar e muito.
A tarefa da caça cabia a Leocádio que era o mais velho e já sabia montar armadilhas para pegar animais silvestres e sabia manusear uma velha garrucha do seu pai. De vez em quando ele conseguia pegar algum animal que dava alguns momentos de fartura àquela família.
Pra pegar água na cacimba que, felizmente, não era muito longe, ia todo mundo, até o pequeno Ademar que trazia o que fosse possível. O mais incrível em tudo isso era que essa situação se repetia todos os dias, há anos, e sempre tinha um final feliz.
À noite, uma caça assava no fogão a lenha da família, todo mundo tinha tomado banho e iria dormir de estômago cheio. O que, no começo do dia, visto por alguém de longe, parecia sem solução, sempre terminava bem.
Amanhã seria outro dia e todos sabiam que, de uma forma ou de outra, tudo iria se resolver.
Uma coisa era certa: antes de dormir a família toda rezava um “Pai Nosso” e uma “Ave Maria” e pedia para que a Mãe Santíssima lhes protegesse o sono. E ela com certeza atendia aos seus apelos, porque, ali havia mais um problema: todas as famílias tinham sido atacadas pelo bicho barbeiro, menos a de Josefina.
Ela tinha muita fé!
Passaram-se os anos, talvez dez ou quinze, ninguém sabia dizer ao certo.
O fato era que Elenita tinha se casado com um filho de Belisário e agora, já tinha três meninos.
Leocádio também tinha se casado com a filha de Doninha, mas ainda não tinha filhos e os outros permaneciam com a mãe que parecia ter envelhecido uns trinta anos. O sol era inclemente ali e as pessoas envelheciam rapidamente.
Ninguém ousava falar no nome de Davi, mas, intimamente, todos esperavam pela sua volta.
À noite, na hora do Pai Nosso, Josefina pedia a Deus que lhe desse notícias do seu menino e ela sabia que os irmãos estavam pedindo a mesma coisa.
Mas, enfim, um dia, algo aconteceu.
No final da tarde, em meio à poeira, um carro apareceu ao longe. Era uma van.
Nela vinham três homens. Pareciam bem-vestidos e educados
Logo atrás apareceu um pequeno ônibus.
Aquilo era um fato inusitado em São Belísio.
Aproximaram-se do casebre e perguntaram por Josefina.
A mulher apareceu e o coração de mãe reconheceu imediatamente o seu filho Davi.
O rapaz estava bonito, barba bem-feita, cabelos penteados e um sorriso que nunca tinha aparecido em São Belísio se estampava em seu rosto.
– Mãe! Vim lhe buscar e também todos os meus irmãos e sobrinhos.
Eu me formei em medicina, me casei, tenho dois filhos e moro em Buriti. Quero que todos vocês venham pra cidade comigo.
Não se preocupem já providenciei onde todos vão morar.
Vou construir uma cacimba e uma escola novas para todos aqui em São Belísio
Ah, sim! Este é o padre Toinho. Ele disse que quer construir uma capela aqui também.
O AÇAÍ
Há muitos e muitos anos, antes mesmo de os portugueses aportarem em terras brasileiras, no lugar onde hoje se ergue a metrópole Belém do Pará, vivia uma tribo indígena próspera e numerosa. Temida por seus inimigos pelo elevado grau de desenvolvimento que tinha e por ter os guerreiros mais valentes de toda a região amazônica, essa tribo vivia em paz porque ao mesmo tempo em que era temida e respeitada por seus inimigos respeitava-os também e vivia somente daquilo que a mãe natureza lhes oferecia.
Seu cacique, o índio Itaki era um homem sábio que governava a tribo com justiça sempre visando o bem-estar de todos acima do seu e tomando as decisões sempre pensando no equilíbrio da paz e da boa convivência com todos.
Mas a população da tribo crescia de tal forma que começou a faltar alimentos para todos os índios. Apesar de ter guerreiros treinados para a caça e para a pesca praticavam uma agricultura que, comparando-se aos nossos tempos, poderia ser considerada rudimentar, mas que lhes oferecia os alimentos adequados e em quantidade suficiente. Isso até aquele momento porque, em função da população muito grande, já não era possível alimentar a todos.
Então, com o coração partido, o cacique Itaki tomou a decisão mais difícil de sua vida: para controlar o crescimento populacional, ele ordenou que, a partir daquela data, toda criança que nascesse teria que ser sacrificada.
Iaçã era a bela filha de Itaki. Recém-casada com o mais valoroso de todos os guerreiros da tribo, Uncaré, a bela Iaçã ficou grávida. Veio, então, a preocupação da mãe e do pai quanto ao futuro do bebê que ainda estava no ventre de Iaçã.
O casal implorou ao cacique Itaki que poupasse a vida do bebê que iria nascer, mas Itaki era justo e manteve a sua decisão dizendo:
– O coração de Itaki está partido, mas, da mesma forma que os filhos dos demais índios da aldeia foram sacrificados, também o neto de Itaki será.
Alguns meses depois, a bela Iaçã deu à luz uma indiazinha que foi imediatamente sacrificada.
A dor profunda que a mãe sentia e a saudade desesperada que lhe afligiam o coração fizeram com que a jovem índia chorasse por vários dias e várias noites sem sair de sua tenda. Foi, então, que ela resolveu pedir a Tupã que orientasse o seu pai, o cacique Itaki para que ele descobrisse um meio de alimentar a tribo e, assim, parasse de sacrificar os recém-nascidos.
Certa noite, ainda desconsolada, Iaçã ouviu uma voz de criança. Ao sair de sua oca viu a sua linda e inocente filhinha sorridente, ao pé de uma palmeira. Iaçã correu para abraçar a criança que, misteriosamente, desapareceu.
Inconsolada, Iaçã chorou a noite toda até morrer de tristeza. No dia seguinte, o seu corpo foi encontrado ainda abraçado à palmeira, porém trazia, estampado no rosto, um sorriso de felicidade com quem reencontra um ente querido que havia partido há muito tempo e a quem não esperava mais encontrar.
Os seus olhos mantiveram-se abertos e fixos no alto da palmeira que estava carregada de uns frutinhos escuros.
O cacique Itaki ficou muito triste com a perda de sua filha, mas muito o impressionou a forma como ela fixava os frutinhos no alto da palmeira. Tomando, então, uma decisão, mandou que colhessem os frutos da palmeira e deles fizeram um suco de uma cor vermelho profundo de um sabor que agradou a todos da aldeia. Itaki, então, deu ao fruto, o nome de Açaí que é Iaçã ao contrário.
O fruto tinha um alto valor nutritivo e, como havia em abundância nas terras da aldeia, foi possível alimentar toda a tribo e o cacique deu ordens para que, a partir daquele dia, nenhuma criança fosse mais sacrificada.
SACI PERERÊ
Um longo e apavorante assovio é ouvido naquela pequenina cidade do sul do país. Situada nas proximidades de uma área de conservação ambiental, a pequena Coração Azul, é apenas um lugarejo, uma cidadezinha do interior de um estado do sul do Brasil.
O vento gelado, que sopra noite adentro, se confunde com o agudo do assovio que vem das profundezas da mata. Isso acontece todas as noites sem luar, especialmente durante o inverno, e todos os trezentos e cinquenta habitantes do lugar evitam ficar nas ruas depois que escurece.
Todos sabem do que se trata, ou de quem se trata, até hoje resta dúvida se é o quê ou quem.
O fato é que, quando isso acontece, durante os dias, nas casas do lugar, as comidas queimam nas panelas, objetos desaparecem misteriosamente, os potes de água ficam vazios sem explicação, enfim, as coisas dão errado repetidamente e uma risada estridente se faz ouvir sem que quase ninguém saiba dizer quem é o responsável por aquele riso perturbador ou o causador de tanto transtorno na vida das pessoas.
Quase ninguém, sim, porque o velho Lenico diz que já viu o sujeito várias vezes.
– Ele é muito rápido, apesar de ter uma perna só – diz Lenico. Quando ele aparece, é uma questão de segundos e tudo o que se pode ver é um menino pretinho, magrinho de uma perna só, fumando um cachimbo com um cheiro forte e um gorro vermelho na cabeça. Não para de rir o desgramado.
Algumas pessoas acham que Lenico está é caducando, mas a grande maioria acredita na história principalmente porque, quase todas as pessoas da cidade já tiveram algum dissabor atribuído ao pretinho de uma perna só.
– Mas “seu” Lenico, por que é que ele gosta de fazer tanta travessura? – pergunta Lindaura, uma jovem de seus vinte e poucos anos, apavorada, com medo do tal negrinho.
– É que ele mora num redemoinho e a vida dele lá, não deve ser muito divertida com tanto chacoalhado de um lado pro outro e, sempre que ele tem uma folga e pode sair de lá, resolve complicar a vida das pessoas.
– E o senhor sabe como é o nome dele? – insistiu Lindaura.
– Ora, ele me disse uma vez, quando eu fiquei muito bravo com ele. Ele dava muita risada porque eu não conseguia pegar ele pra puxar as orelhas dele. Sumia de um canto e aparecia em outro com uma velocidade danada. Então eu perguntei. Quem é você, moleque safado? Como é o seu nome?
– Saci Pererê – respondeu.
Naquele momento um redemoinho apareceu na empoeirada rua principal de Coração Azul e se afastou, levantando pó, deixando um forte cheiro de fumo de cachimbo. O som de uma risada estridente ficou e Lindaura se lembra dela até hoje.
O PIRARUCU
O caudaloso rio Amazonas corta toda a Amazônia brasileira. Suas águas já transportaram sonhos, amores, esperanças e desilusões, mas foram, também, palco de uma das mais interessantes histórias já ocorridas em suas águas.
Há muitos e muitos anos, havia uma tribo de índios chamada Nalas. Seus guerreiros eram fortes e excelentes caçadores. Dedicavam as suas vidas ao culto do deus Tupã e suas ações eram sempre voltadas para a família e à proteção dos mais fracos.
Eram famosos por seu sentimento de justiça e respeito pela natureza e pelos animais. Caçavam unicamente para satisfazer as necessidades de suas famílias. Jamais matavam por prazer.
Os guerreiros Nalas eram homens justos, mas nem todos.
Havia um jovem guerreiro, mais forte do que todos os outros, mas que se diferenciava de seus irmãos pelo seu espírito, apesar de bravio e guerreiro, belicoso e por nutrir um forte sentimento de maldade e de injustiça.
Seu nome era Pirarucu.
Era comum esse guerreiro aparecer na tribo apenas com os couros de animais que ele caçara desprezando a carne que serviria de alimento para o resto da tribo.
Ele gostava de demonstrar que era o melhor de todos em tudo. Não tinha respeito pelos animais nem pela vida e, por seu porte físico avantajado, ninguém ousava desafiá-lo, O único que tinha coragem de lhe chamar a atenção era o cacique Canicumi, mas o destemido guerreiro não lhe dava ouvidos e continuava com suas ações predatórias, dia após dia.
Esse modo de proceder de Pirarucu desagradava fortemente a Tupã que deu ordens à deusa Laruauaçu para que o castigasse.
E assim aconteceu.
O jovem Pirarucu estava em mais uma de suas caçadas em meio à floresta amazônica quando uma chuva fortíssima desabou.
Era tanta água que mesmo aquele guerreiro, intrépido e acostumado com as intempéries da natureza estranhou e procurou um lugar para se abrigar.
Raios caiam ao redor do jovem índio e trovões lhe atordoavam a mente.
Para onde quer que ele corresse a tempestade e os raios o acompanhavam até que um forte temor começou a tomar conta do jovem Pirarucu.
O rapaz finalmente encontrou refúgio sob umas pedras e, ali, resolveu esperar que a tempestade amainasse, mas ela continuou caindo impiedosamente e, a cada momento, se intensificava.
Os clarões dos raios inundavam a floresta que naquela região se chamava Xandoré e o medo começou a tomar conta da mente do rapaz.
À medida que a tempestade castigava duramente a região e o vento açoitava raivosamente as árvores que balançavam loucamente indo quase até o chão, o rapaz foi entendendo que, talvez, ele fosse a causa de tudo aquilo.
Finalmente compreendeu que Tupã estava bastante zangado consigo.
Imediatamente começou a entoar um cântico de perdão e, mesmo ajoelhando-se e pedindo ao deus que o poupasse, a fúria da tempestade só fazia aumentar.
Naquele momento o índio estava tomado pelo medo porque lembrava-se de como tinha sido mal para com os animais maltratando-os e matando-os desnecessariamente.
Repentinamente, uma enorme pedra soltou-se da montanha sob a qual ele se abrigava esmagando-lhe a cabeça.
O bravo, porém, impiedoso guerreiro Pirarucu estava morto.
Formou-se então uma forte correnteza que arrastou o corpo do índio para as profundezas do rio Amazonas cujo leito localizava-se próximo daquele local.
Em pouco tempo a chuva parou, mas Tupã ainda não estava satisfeito com o castigo aplicado e, então, decidiu dar o golpe final: transformou o poderoso guerreiro em um enorme peixe de cabeça chata para que todos o comtemplassem para sempre e este peixe é hoje chamado de Pirarucu o imponente e majestoso peixe que habita as águas do rio Amazonas.
O CAOS E A LIBERDADE.
Era uma segunda-feira comum.
As pessoas andavam apressadamente sem tempo sequer para observar quem passava ao seu lado. Isso não era importante. O que importava era chegarem aos seus destinos nos horários previstos.
Em uma cidade grande como aquela, na rua, ninguém sabe quem é quem. Cada um cuida de si mesmo.
Wilson trabalhava em um escritório de advocacia. Era um simples escriturário, mas tudo ali dependia dele.
Era ele quem marcava as audiências, reuniões, viagens, enfim, tudo. Ali nada se movimentava sem antes passar por ele.
Ele era o “faz-tudo” da empresa.
Tinha acabado de sair da estação do metrô e lhe restava ainda uma caminhada de quinze minutos até chegar ao escritório naquele enorme e luxuoso edifício, no décimo-quinto andar.
Tudo afinal, estava obedecendo uma rigorosa rotina.
Ele chegaria no horário certo, mas, com certeza, já encontraria os chefes completamente estressados. Era assim todos os dias.
Ele sabia que esta era a sua sina e que estava fadado a passar o resto de sua vida daquela forma. Conformara-se há muito tempo, afinal, já trabalhava ali há dezessete anos. Sabia tudo de cor e salteado.
Naquele dia, porém, algo aconteceria que mudaria a sua vida e a de muita gente para sempre.
Logo que saiu da estação, Wilson percebeu que o tempo estava incrivelmente fechado dando a nítida impressão de que um temporal iria desabar a qualquer instante e – puxa vida! – ele sequer tinha trazido um guarda-chuvas, mas, também, como ele poderia adivinhar se, quando saiu de casa, o sol nem mesmo havia nascido e a escuridão e o frio não lhe davam opção de pensar em outra coisa a não ser o maldito trem, sempre lotado, depois um ônibus que o levaria à estação do metrô e, dali, os seus quinze minutos de caminhada até o escritório. Eram duas horas e meia de viagem todos os dias só para ir e outras duas horas e meia para voltar.
Vida dos infernos, pensava ele!
De fato, o temporal desabou.
A enorme avenida ficou alagada em questão de minutos.
Para seu conforto percebeu que guarda-chuva nenhum faria qualquer diferença naquele instante.
Quem quisesse se aventurar a sair dos abrigos ficaria encharcado instantaneamente.
Ele não tinha opção e resolveu enfrentar o temporal.
O aguaceiro desabava impiedosamente seguido de raios e trovões que assustavam a todos.
Em questão de minutos era noite de novo.
As luzes da cidade se acenderam e, aos poucos, o caos foi tomando conta do lugar.
Os semáforos pararam de funcionar e os carros buzinavam loucamente. Os acidentes sucediam-se sem parar e ninguém sabia o que fazer.
Os bueiros não davam conta de escoar toda a água que caía e, rapidamente, a enxurrada já atingia o nível das portas nos carros.
Pessoas caíam e eram arrastadas pela correnteza e só não aconteciam tragédias maiores porque sempre havia alguém que as socorria e conseguia puxá-las para baixo de alguma marquise.
A água, agora, já chegava aos joelhos de Wilson e ele, embora permanecesse relativamente calmo, percebeu que o pânico já começava a se instalar entre os transeuntes e algumas pessoas começaram a chorar e a pedir socorro.
As mulheres, os idosos e as crianças estavam completamente apavoradas.
Não havia policiamento de maneira nenhuma, os carros já não transitavam, alguns motoristas começaram a abandoná-los e a rede elétrica entrou em pane.
Tudo se apagou.
Eram apenas nove horas da manhã e a cidade estava em total escuridão.
Os gritos de desespero começaram a ser ouvidos.
Alguns pediam socorro, outros choravam desesperadamente, alguns se agarravam aos postes e, como já era de se esperar, um grupo começou a invadir as lojas quebrando-lhes as portas, vidraças e vitrines.
Era o caos total.
A meteorologia não tinha dado nenhum sinal de que algo assim aconteceria, mas estava acontecendo.
Em apenas quarenta minutos de tempestade a cidade estava completamente irreconhecível.
As pessoas que, há apenas alguns minutos, circulavam apressadas, mas, muito bem-vestidas, agora era apenas arremedos de cidadãos. O desespero tinha tomado conta de quase todos, sim, quase, porque, por incrível pudesse parecer, Wilson se mantinha calmo.
Ele percebeu que a sua vida não valia tanto assim e que, simplesmente, não queria lutar.
Entendeu que estava cansado de viver e que, talvez, morrer, fosse a melhor solução.
Estava cansado de tudo. Da rotina miserável, daquelas horas intermináveis de viagens diárias, das pessoas estressadas no escritório e de saber que o seu salário nunca dava para pagar as despesas do dia a dia.
Wilson parou. Encostou-se em uma parede, a chuva turvando-lhe a vista e os raios caindo impiedosamente por todos os lugares.
Simplesmente saiu andando lentamente até que não enxergava mais nada.
Quarenta e oito horas depois, as equipes de resgate identificaram o corpo de um homem de meia idade, por volta dos seus quarenta anos, morto. Um poste desabou sobre ele tirando-lhe a vida.
No crachá, dentro do bolso do agasalho, estava escrito Wilson dos Santos e Silva.
Disseram que ele não tinha sofrido e que a morte fora instantânea, mas o fato era que, estranhamente, aquele homem tinha um leve sorriso estampado em um rosto que parecia expressar um sentimento de paz e de liberdade.