ROSAS VERMELHAS PARA SEMPRE
Cássio e Mariana eram colegas de faculdade. De diferentes classes sociais, os dois só se encontravam nas aulas ou nos intervalos. Davam-se muito bem. Era visível o quanto um se sentia bem na presença do outro e Cássio tinha um costume que agradava bastante a Mariana: Todos os dias ele lhe trazia um pequeno presente. Podia ser uma bala de chocolate, uma flor, ou, simplesmente, mandava-lhe uma mensagem pelo celular desejando-lhe um bom dia.
Estavam já no último ano do curso de Direito, mas iriam seguir destinos diferentes. Cássio pretendia ser advogado criminalista e Mariana tinha o sonho de ser juíza.
Nos fins de semana a diferença social separava-os. Mariana morava em um bairro de classe alta, filha de pessoas de alto poder aquisitivo e Cássio morava em um subúrbio distante, perigoso e em uma realidade totalmente diferente de sua amiga.
O fato era que ambos nutriam um amor impossível, um pelo outro. Impossível porque se Mariana quisesse assumir um romance com um rapaz da classe social de Cássio teria, inexoravelmente, que romper com seus pais. Era difícil dizer-se quem era mais prepotente, se o pai, Eduardo, ou a mãe da jovem, Josefina. Ele, empresário de grande porte, milionário, acostumado a conviver com pessoas de seu nível, sonhava com um casamento para sua filha que estivesse dentro do que ele consideraria compatível com a sua classe social.
A mãe, por sua vez, vivia as futilidades de uma “socialite”. Sempre presente nas grandes reuniões sociais, chás beneficentes que, na verdade, só serviam para aparecerem nas colunas sociais, acharia o maior dos absurdos que sua filha, criada com tanto mimo, bonita, moça de tanta cultura, acostumada aos grandes salões do país e da Europa resolvesse namorar com um rapaz da periferia. Casar-se, então, seria, para ela, melhor a morte, porque, aí “a humilhação seria grande demais.
Os dois jovens se formaram e cada um seguiu o seu caminho. O fato era, no entanto, que o jovem Cássio, agora que já não via a sua amada, contentava-se em lhe enviar uma mensagem carinhosa pelo celular. Isso era diariamente.
Mariana fora preparada desde pequena para ser juíza. Filha única, não tendo aptidão para os negócios do pai, demonstrava firmeza em suas convicções o que agradava bastante Eduardo e Josefina.
Logo após a conclusão do curso de Direito, Mariana matriculou-se em uma escola preparatória para os concursos da área da magistratura e não foi nada difícil para o pai, milionário, conseguir um emprego onde ela adquirisse a necessária experiência de prática forense.
Cássio, por capricho do destino, teve que se mudar para uma outra cidade, mas, antes de partir, resolveu despedir-se de sua amada Mariana.
Primeiramente, comunicando-se sempre por telefone, informou-lhe de suas intenções, planos de se mudar para uma outra cidade e que gostaria de se despedir dela. Mariana, em um momento de ingenuidade, disse ao jovem que poderia recebê-lo em sua residência e que o esperaria no dia seguinte à noite.
Era uma quarta-feira e, por volta das vinte e uma horas o rapaz chegou à belíssima mansão da família de Mariana.
O mordomo anunciou o jovem na imponente sala de estar onde a família conversava.
Os pais de Mariana, evidentemente, esperavam que o rapaz fosse o filho de algum empresário ou um juiz de renome, enfim, algum endinheirado que estivesse fazendo a corte à sua filha.
Quando o rapaz entrou na sala, os seus trajes simples denunciaram a sua origem.
O pai ficou visivelmente decepcionado e Josefina quase teve um infarto.
Mariana percebeu o clima hostil que se formou, mas, mesmo assim, decidiu apresentar o rapaz aos pais.
Não foi nada agradável. Eduardo sequer estendeu a mão para cumprimenta-lo enquanto Josefina, simplesmente, retirou-se do ambiente sem dizer uma única palavra ao recém-chegado.
Cássio engoliu em seco e, para não deixar a sua Mariana ainda mais constrangida, apenas deu-lhe um beijo no rosto e disse adeus.
A moça acompanhou-o até a porta, mas não teve coragem de olhar em seus olhos na despedida. Se o fizesse, perceberia duas lágrimas que insistiam em rolar pelo rosto do pobre rapaz.
A partir daquele dia, Cássio parou de lhe mandar mensagens pelo celular, mas, o que sentia por Mariana era tão forte que ele passou a enviar-lhe rosas vermelhas, pelo menos uma vez por mês.
O tempo passou. Agora Mariana já era uma juíza e, concidentemente, teve a seu encargo o caso de um assassinato de um jovem acontecido alguns anos atrás.
Tratou-se de um assalto. A vítima caminhava distraidamente pelas ruas do bairro nobre, próximas da casa de Mariana quando foi abordado por dois sujeitos que o ameaçavam com armas de fogo. O homem entregou-lhes todos os seus bens, mas, mesmo assim, por absoluta maldade, os bandidos não tiveram piedade e mataram o rapaz com dois tiros no coração.
O caso não teve muita repercussão na mídia porque situações como aquela aconteciam já corriqueiramente no país inteiro. Era apenas mais um caso de latrocínio.
O rapaz morto, coincidentemente, chamava-se Cássio, também, mas é claro que não poderia ser o seu Cássio, pensava Mariana, porque ela continuava recebendo as rosas vermelhas pelo menos uma vez por mês e quem as mandava era ele mesmo.
Acontece que, ao estudar o caso mais profundamente, a jovem deparou-se com as fotos do crime e, ali, reconheceu, no homem assassinado, o seu querido Cássio.
– Não pode ser ele – pensava ela – mesmo reconhecendo nas fotos o seu antigo colega de faculdade e o grande amor de sua vida.
Levantou a situação desesperadamente e, afinal, chegou à conclusão da estória.
O jovem Cássio, após a grande desilusão e humilhação a que o submeteram os pais de Mariana, mudou-se, de fato, para uma outra cidade, onde, com muito trabalho, conseguiu montar um escritório de advocacia tendo ficado famoso e, agora, bem-sucedido, voltava para, mais uma vez tentar conquistar os pais de Mariana, porque o coração da jovem, ele sabia que era seu.
Mas o destino já tinha decidido que aquele amor não daria frutos e tratou de colocar no caminho do jovem os dois latrocidas que acabaram com sua vida. Antes de ser morto, no entanto, o rapaz, agora muito bem financeiramente tinha passado em uma floricultura e encomendado um buquê de rosas vermelhas que deveriam ser enviadas para a sua querida Mariana por vários anos, uma vez por mês.
TIAGO E ARTUR
Edmundo Oliveira Bastos era juiz. Homem justo e rigoroso, temente a Deus, ponderava sempre com esse sentimento quando tomavas as suas decisões. Viera de família humilde, lá do interior do nordeste, oitavo filho de uma prole de onze e sempre teve que se virar sozinho na vida. Profundamente estudioso e com grande facilidade para redigir, admirador dos grandes pensadores e estadistas, não foi difícil decidir-se pelo estudo das leis.
Quando chegou a São Paulo, quarenta anos atrás, o seu maior patrimônio era a sua perseverança. Tinha que vencer na vida e teria que ser honestamente, sem pedir favores a ninguém, sem infringir as leis nem desrespeitar as pessoas.
Com esse pensamento, aos vinte e cinco anos de idade formou-se em Direito e aos vinte e sete já era juiz, aprovado em concurso público em primeiro lugar.
Tornara-se um homem obcecado pelo trabalho e pela justiça. Jamais houve um dia na vida, depois que se tornou juiz, que tivesse trabalhado menos de catorze horas. Tirava uma folga nos fins de semana quando se dedicava às suas leituras favoritas. Lia Nietsche, Confúcio, Shakespeare, etc além, é claro dos juristas mais renomados do planeta. Fluente em inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e russo era o que se poderia chamar de um grande intelectual. Também já tinha lido as biografias de Júlio César, Napoleão, Hitler, Churchil, Mao Tsé Tung, Ho Chi Min e de todos os grandes líderes que já passaram pela face da terra, incluindo aí, é claro, Jesus Cristo.
Casado com Dona Guiomar D’Andrada Bastos, mulher de família aristocrata, culta tanto quanto o marido, mas que abdicara de ter uma carreira profissional para se dedicar à família.
O casal teve apenas um filho, Pedro e um neto, Tiago. Talvez os nomes dos descendentes do juiz Edmundo até tivessem alguma coisa a ver com a fé religiosa dele. Era um homem extremamente respeitado, tanto no trabalho, quanto em casa – se bem que, se alguém quisesse dizer, temido, em vez de respeitado, não estaria errando muito. Fazia questão de que os funcionários do prédio classe A, onde morava, o chamassem de doutor e, mesmo sua família, inclusive sua nora, o tratava com um respeito quase feudal.
Mas o juiz Edmundo tinha um ponto fraco: Era louco por seu netinho, de seis anos, inteligente e extremamente carinhoso com os avós. Na verdade, era a única pessoa na terra que tinha liberdade de brincar com o magistrado.
Heitor Capistrano era professor universitário. Lecionava história em uma faculdade particular e em uma das grandes Universidades Federais do país. Era um homem de classe média baixa, haja vista que, por aqui, os salários dos docentes nunca foram considerados com seriedade.
Heitor era um homem simples, bondoso, adorado por seus alunos e por seus colegas de trabalho. Tinha casado com Helena, também professora universitária que lecionava filosofia em várias faculdades particulares e, tal qual seu marido, era profundamente querida por todos.
Heitor e Helena eram convidados a todas as formaturas das universidades. Sempre eram escolhidos para padrinhos de algum formando e, se algum professor tivesse que fazer um discurso de despedida, escolhiam, sempre, um dos dois.
Tiveram, uma única filha que lhes deu um netinho chamado Artur e que, agora com seis anos, demonstrava ter afinidade com os livros, posto que se saía muito bem na escola sem precisar que os pais ficassem cobrando-o por qualquer coisa.
Tudo ia muito bem para as duas famílias dentro da realidade de cada uma. Eram realidades díspares, mas quem foi que disse que é preciso ser professor ou juiz para ser feliz? Ou infeliz?
Um dia, Helena começou a notar uma pequena deformidade no rosto do pequeno Artur. Começou com alguma coisa que parecia um pouco como se ele estivesse com a boca torta.
Correram para o médico que disse que o menino tivera um leve AVC – Acidente Vascular Cerebral – mas que, se tivessem os cuidados necessários dali pra frente, não aconteceria de novo e o garoto poderia ter uma vida absolutamente normal.
Passados seis meses do episódio do AVC, o pequeno Artur apresentou uma distorção no alinhamento dos olhos, como se um estivesse ficando mais baixo do que o outro. Já estava tão acentuado que deu para os pais perceberem.
Correram ao oftalmologista que detectou um pequeno relaxamento muscular na face que provocara aquele desalinhamento. Com alguma medicação e fisioterapia tudo estaria resolvido.
Recuperado dos problemas anteriores e, agora já com oito anos, o pequeno Artur começou a apresentar problemas na fala e falta de concentração. Os pais levaram o menino a um psicólogo que recomendou um tratamento contra dislexia e a consulta com uma fonoaudióloga.
Só que desta vez, o quadro de Artur não se reverteu, pelo contrário, voltou o desalinhamento nos olhos, a boca entortou novamente e o garoto já não tinha firmeza para andar.
Os pais passavam de médico em médico e nenhum deles chegava a qualquer diagnóstico. Recomendaram-lhes uma viagem a um país mais desenvolvido porque, “quem sabe, se a medicina por lá não estava mais avançada?” Diziam os amigos.
De fato, após uma viagem à Europa o casal voltou com o diagnóstico de uma doença raríssima, autoimune, que provocava a deterioração dos órgãos, músculos e nervos do menino. Em breve, disseram os médicos, ela chegaria a algum órgão vital como rim, pulmão ou coração.
Mas, nem tudo estava perdido. Havia um medicamento em uso, já liberado em alguns países da Europa que o menino tinha tomado enquanto esteve fora do Brasil em função do qual apresentara resultados fantásticos. O menino melhorava a olhos vistos, mas ele teria que tomar pelo resto de sua vida.
Os pais compraram a quantidade que seu dinheiro permitiu na certeza de que, chegando ao Brasil, poderiam importar mais e mais.
O remédio era caro, mas, com a ajuda de parentes e de amigos, conseguiram o dinheiro para importar o medicamento em uma boa quantidade. Mas foi aí que os destinos das duas famílias se cruzaram: A importação do remédio ainda não estava autorizada no Brasil pelo fato de seu registro não ter sido homologado pelo órgão competente.
A solução, pensou Heitor, seria buscar uma autorização judicial.
O caso caiu nas mãos do juiz Edmundo Oliveira Bastos. Estudioso como sempre, o juiz aprofundou-se nos detalhes do problema da família, comoveu-se com os sintomas apresentados pelo menino e pelo fato de que ele era o único neto, tal como o seu querido Tiago. Só que havia um problema: o medicamento era feito de células-tronco de recém-nascidos e onde ele tinha sido testado o resultado fora um sucesso, mas o Dr. Edmundo era contra a utilização das células-tronco, por absoluta convicção religiosa e o seu veredicto foi taxativamente contra a importação da droga com a especial recomendação de proibição de seu uso em todo o território nacional até que os órgãos competentes o homologassem, ou seja, diante da negativa de um magistrado tão importante e respeitado, a resposta era, nunca.
Heitor e Helena tentaram todos os recursos possíveis para conseguir a liberação da importação, mas não conseguiram. A solução agora era outra: contrabando.
Aquilo jamais tinha passado pela cabeça do casal, mas, diante do quadro de saúde do único neto, não havia outra coisa a fazer.
Heitor viajou para o exterior e voltou com alguns frascos do medicamento. Não teve sorte e, ao passar pela alfândega na chegada ao Brasil, foi pego com o medicamento contrabandeado.
Heitor foi condenado a cinco anos de reclusão, pena máxima para o crime de contrabando e, pela falta do remédio, em dois anos o pequeno Artur faleceu vítima de uma parada cardíaca.
A vida continuava normal para o juiz Edmundo e sua família até que Dona Guiomar recebeu um telefonema da nora dizendo que estava notando umas coisas estranhas no rosto do pequeno Tiago, agora com onze anos.
Os avós foram até lá e o coração do juiz Edmundo quase parou quando ele percebeu que seu netinho apresentava um pequeno desnivelamento nos olhos, a boca torta e dificuldade para falar.
O CARPINTEIRO
Henrique era trabalhador, honesto, bom marido, bom pai, bom cidadão, enfim, um homem respeitado e admirado pela comunidade onde morava. Tinha todas as qualidades que se espera encontrar em uma pessoa de bem, temente a Deus e cumpridor de suas obrigações.
Havia, no entanto, um detalhe importante na personalidade daquele cidadão respeitável: ele não acreditava em Deus, não tinha religião, detestava falar sobre o assunto e apenas tolerava o fato de que sua esposa, Clarice, ia às missas aos domingos e ela, com muita dedicação, conseguira que os filhos João e Miguel a acompanhassem. Ele gostava de dizer que era um ateu convicto.
A mulher ia todos os domingos à pequena igrejinha construída em homenagem a N. S. de Lourdes. Era uma capelinha simples que, devido ao trabalho do padre Agostinho, estava sempre lotada e, por isso, a maior parte dos fiéis assistia ao sagrado sacramento de pé. Clarice não reclamava e, durante anos e anos cumpriu aquele ritual aos domingos.
O marido levava-a e aos filhos e esperava pacientemente que a cerimônia religiosa terminasse e levava a família de volta para casa. Não perguntava nada e Clarice evitava falar qualquer coisa sobre o sermão do padre ou qualquer outra parte da liturgia, mas, no íntimo, ela jamais desistira de convencer o marido quanto aos benefícios de se ter uma religião e que Deus, afinal, amava a todos.
Os anos passavam, a vida do casal prosseguia com tranquilidade e Henrique, que era carpinteiro, prosseguia com sua forte “convicção” de que o homem criara Deus e não, como propalava a religião de sua esposa, Deus criara o homem.
Não faltava trabalho ao carpinteiro que era considerado excelente profissional por todos os moradores e, mesmo sem uma renda familiar muito grande, ele conseguia prover a família do necessário para que vivessem com dignidade. Os filhos, João com catorze anos e Miguel com doze, iam bem na escola, a esposa fazia algum trabalho de costura para as vizinhas e, no fim do mês as contas e o orçamento doméstico se equilibravam.
Um dia aconteceu algo inesperado.
Henrique cortava umas peças de madeira com uma serra circular, ferramenta afiadíssima e, em um momento de distração, a sua mão direita estava onde não devia e a serra atingiu-a drasticamente. O ferimento quase lhe decepou a mão que ficou pendurada por alguns poucos nervos que não foram atingidos.
O homem, desesperado de dor, pediu ajuda à mulher e a alguns vizinhos que o levaram para o hospital mais próximo.
Após várias horas de cirurgia, o médico aproximou-se da família e informou a gravidade do ferimento e a complexidade da situação e que fizera todo o possível para salvar a mão direita de Henrique, no entanto, a possibilidade de ser necessária uma amputação a posteriori era muito grande. Deveriam esperar a reação do paciente, mas, de qualquer maneira, a recuperação seria muito lenta e exigiria muitos cuidados fisioterápicos.
O médico estava dizendo que Henrique teria que ficar bastante tempo sem trabalhar e que, talvez, tivesse até que mudar de profissão.
Tempos difíceis vieram, então. O carpinteiro cuja única fonte de renda era o seu próprio trabalho, impossibilitado de exercer a sua profissão, viu, de repente, toda a família dependente da pouca renda que a esposa conseguia com seus trabalhos de costura.
Mesmo assim, Henrique ia todos os dias para a sua oficina tentar fazer alguma coisa, mas não conseguia. A tristeza tomou conta do carpinteiro que, pela primeira vez na vida, não sabia o que fazer.
Um dia, pela manhã, o carpinteiro abriu a sua oficina e deparou-se com um homem à sua porta.
– Ouvi falar que o senhor está precisando de ajuda e, como sou carpinteiro também, vim me oferecer para ajudá-lo e o senhor me pagará com comida e de acordo com a minha produção, ou seja, só precisará me pagar quando receber pelas encomendas – disse o homem que deveria aparentar, talvez, um pouco mais de trinta anos usava barbas e roupas bem simples, típicas de um operário.
– Acontece que eu não tenho nenhuma encomenda há mais de um mês porque as pessoas sabem que eu estou incapacitado e, dessa forma, não vou poder pagar-lhe – respondeu Henrique.
– Bem, vou sair por aí e dizer para as pessoas da cidade que o senhor já tem um ajudante e que, agora, já está aceitando encomendas – respondeu o jovem.
– Bem, se você aceita trabalhar nessas condições e, pelo fato de eu estar precisando de fato de ajuda, aceito também.
Assim sendo, o jovem saiu aquela manhã pela cidade e logo retornou.
Admirado pelo fato de o rapaz ter demorado tão pouco Henrique perguntou:
– Já voltou? Então você não avisou ninguém!
– Avisei sim. Um senhor me disse que está precisando de uma mesa e algumas cadeiras e mais tarde virá aqui – respondeu o jovem.
De fato, um pouco mais tarde, chegou um dos vizinhos de Henrique e lhe encomendou a mesa com algumas cadeiras com o espaldar bem trabalhado. Havia alguns detalhes que nem mesmo Henrique já havia feito.
Preocupado com a dificuldade do trabalho, mas, diante da premente necessidade da família, o homem aceitou a tarefa.
O jovem carpinteiro, então, demonstrando extrema habilidade no ofício executou a tarefa com perfeição fazendo todos os detalhes exigidos pelo cliente.
Henrique olhou o resultado do trabalho do rapaz e ficou bastante impressionado. Aquele jovem era um excelente carpinteiro, sem dúvida.
Tão logo o trabalho ficou pronto logo chegou mais uma encomenda e depois mais outra e, assim, o jovem trabalhava o dia inteiro sem reclamar e com extrema perícia.
Henrique, então, agradecido, e depois de ter recebido o pagamento das encomendas decidiu pagar a parte do seu jovem e eficiente ajudante.
– Deixe para mais tarde, quando tivermos feito mais algumas encomendas. Não se preocupe porque eu não estou precisando no momento- respondeu o carpinteiro barbudo.
– Vejo que sofreu um grave acidente na mão direita. Como foi isso? – perguntou o ajudante.
Henrique narrou-lhe então o que acontecera naquele dia fatídico em que quase perdeu a mão e disse que estava bastante desanimado porque o ferimento estava cicatrizando e ele percebia que estava perdendo os movimentos da mão.
– Ora, deixe-me ver isso – pediu o rapaz.
Henrique não se incomodou e deixou que o rapaz segurasse sua mão e a colocasse entre as suas.
– Fique calmo e tenha fé. Você vai ficar curado – disse o rapaz.
Naquele instante Clarice entrou na oficina para oferecer um pouco de café ao marido e a seu ajudante e percebeu que o jovem tinha cicatrizes grandes nas palmas de ambas as mãos e que apareciam do outro lado.
Henrique viu que a esposa se impressionou com o fato e, como já tinha notado isso há algum tempo, não entendeu porque a mulher ficou tão admirada.
Já era a hora de encerrar o trabalho naquele dia e o jovem carpinteiro se despediu do casal.
No dia seguinte, surpreendentemente, o ferimento da mão direita de Henrique havia cicatrizado e ele a movimentava normalmente.
Desde aquele dia, o jovem carpinteiro não apareceu mais na oficina.
VELHAS CONVERSAS
– Ah! Finalmente você chegou! Por que demorou tanto?
– As condições do tempo me atrasaram. Na verdade, muita coisa estranha está acontecendo hoje em dia!
– Bem! O que você tem de novidade para me contar lá das bandas do sul?
– Estou feliz com o que tenho visto – disse o visitante. Afinal bons ventos de paz estão soprando por lá. Finalmente teve fim uma guerra sangrenta entre quatro nações da América do Sul. É verdade que muitos seres humanos morreram, mas o mais importante é que acabou. Espero que, a partir de agora, os homens entendam que é bom e necessário viverem em paz.
– Isso é inacreditável. Sabe que há muitos e muitos anos você e seus irmãos me visitam e, de vez em quando me contam essas notícias de guerra e de irmãos que matam irmãos por razões que, em muitos casos, a maioria desconhece – respondeu a velha senhora.
– Como lhe disse, finalmente acabou. Existe um monarca, em um grande país , que é um homem sábio, ponderado e que pensa muito em sua pátria e seu povo e tudo faz para o seu bem.
– Essas pessoas são importantes para a humanidade. Espero que ele tenha vida longa. – disse a senhora.
– Muita gente gosta dele, mas também é fato que ele tem muitos inimigos. A filha desse monarca tem discutido muito por causa do regime de escravidão que ainda existe lá e parece que o seu pai é simpático à ideia de terminar com essa coisa horrível mas há muitos interesses envolvidos por trás de tudo isso. Homens poderosos, que se aproveitam da mão de obra escrava, não aceitam de forma nenhuma que esse regime termine, mas a princesa é persistente e não desiste. Espero que ela consiga – disse o visitante.
– Eu também. Os seus irmãos, que vivem no norte me disseram que, por lá essas coisas não existem mais mas, infelizmente, houve, por esse motivo, uma guerra terrível de irmãos contra irmãos em que muita gente inocente morreu também. Espero que isso um dia termine.
A conversa demorou ainda algum tempo. Falaram sobre amenidades e das viagens que o seu visitante fazia pelo mundo afora.
A velha senhora ficou lembrando que essa conversa acontecera há alguns anos e que, depois disso, muita coisa aconteceu na região a que seu visitante, que vinha sempre do sul, se referira. Realmente a escravidão havia sido abolida mas isso teria despertado um ódio muito grande de alguns poderosos que acabaram depondo o monarca, expulsando-o do país que ele tanto amava e instalado uma nova forma de governo.
As lembranças iam e vinham e ela se recordou quando, há um pouco mais de tempo, um outro visitante, desta vez vindo do norte, lhe contara que um grande homem, que governava uma grande nação, também se empenhou muito para que esse regime escravocrata tivesse fim e conseguiu, no entanto, alguns anos depois, foi assassinado a bala quando estava em um teatro. Coisas tristes que se seguiam a acontecimentos grandiosos na história da humanidade. Ela se perguntava por que os homens viviam em guerra e matavam uns aos outros. Não conseguia entender aquilo porque entre as suas amigas, isso não acontecia nunca.
Lembrou-se também de um antigo visitante que estivera com ela há muitos anos e que tinha lhe falado de um jovem andarilho, de barbas de pontas e cabelos longos, sempre usando sandálias que só ensinava o bem. Curava as pessoas, confortava os infelizes, acudia os necessitados e trazia esperança àqueles que já não tinham nada a esperar da vida. Multidões o seguiam e escutavam, com atenção, suas palavras. Ainda assim, foi humilhado e massacrado pelas próprias pessoas que ajudara mas prometeu que voltaria. No começo ela achou estranho o fato de um homem ter sido tão mal tratado por seus semelhantes, morto por eles e, mesmo assim, até o último minuto de suas vidas perdoo-os e pediu perdão por eles. Finalmente, depois de algum tempo, ela entendeu.
Ela recebia muitas visitas e uma das que mais a tinha deixado triste foi uma vez em que o recém chegado lhe falou de um homem que formara um exército poderoso e que pretendia extinguir as raças que ele considerava inferiores. Mais uma vez, milhões de pessoas foram mortas por uma razão insana. Felizmente, no entanto, após tragédias sucessivas, o sujeito foi derrotado. O que a confortava era o fato de, finalmente, ao que parecia, os homens terem aprendido a lição e tomado precauções para que fatos como aqueles jamais se repetissem novamente.
Agora ela esperava mais uma visita que deveria chegar em poucos dias. Já fazia algum tempo que ele não aparecia e costumava contar belas estórias de seus passeios pelos mares e de como eram bonitos e tinham cores variáveis. Falava de pássaros que se movimentavam de acordo com estações do ano e que migravam por milhares de quilômetros. Depois, quando as condições se invertiam, voltavam ao seu ponto de origem. Repetiam isso ano após ano há muitos e muitos séculos.
– Ahhh! – a velha senhora deu um gripo de dor!
– O que está acontecendo?
– Que barulho é esse?
– Estão me machucando! Socorro!
A velha senhora urrava de dor e pedia desesperadamente que alguma coisa ou alguém a ajudasse.
– Por que estão fazendo isso? Eu estou aqui há milhares de anos! Vi tudo acontecer na terra!
Repentinamente ela começou a ficar fraca enquanto a motosserra penetrava implacavelmente em seu caule.
– Não me matem, por favor! – pediu uma última vez.
Não houve jeito. Em um último espasmo ela olhou para baixo e viu os homens se vangloriando do seu trabalho.
A velha samaumeira, então, emitiu um último suspiro e tombou estrondosamente na floresta.
A brisa costeira que chegou para a sua rotineira visita e demoradas conversas com a velha senhora só viu o tronco sangrando, cortado quase rente ao chão e a sua amiga no solo, já sem vida.
Ao redor dos restos de sua antiga amiga, os homens faziam festa pela sucesso de seu trabalho, afinal, tinha sido difícil conseguir autorização para derrubar aquela árvore velha que atrapalhava a passagem da nova auto estrada. Não importavam as suas memórias nem as estórias que ela, quem sabe, um dia, contaria às demais árvores, mais novas, da floresta.
A brisa do mar, então, enfureceu-se e se transformou em uma violenta tempestade tropical açoitando durante vários dias e várias noites toda a região.
Era a sua forma de prantear a velha amiga.
OS FRUTOS DE UMA TRAIÇÃO
Eloá era uma mulher quase comum. Quase porque, com a sua beleza estonteante, “parava o trânsito” por onde passava. Moça séria, recém-casada, bom emprego, nível cultural acima da média, curso superior em economia e mestrado em uma universidade bem conceituada, vivia um casamento feliz e tranquilo graças às ótimas condições financeiras suas e de Gérson, seu marido, homem de muitos negócios, falante e agradável e do amor que um sentia pelo outro. O casal não tinha do que reclamar na vida. Duas ou três vezes por ano viajavam para o exterior sempre se hospedando nos melhores hotéis, curtiam uma vida que poderia dar inveja a muita gente.
Causou inveja, sim.
Carolina ou Carol, como ela gostava de ser chamada era tão bonita quanto Eloá. Igualmente desfrutava de um ótimo nível social e cultural, mas havia algo que a amiga possuía e ela não, ou melhor, alguém. Carol era apaixonada por Gérson. Nutria esse sentimento em sigilo, mas estava cada vez mais difícil disfarçar, principalmente, pelo fato de que, sendo ela uma das amigas mais próximas de Eloá, era comum, nos fins de semana, visitar os amigos e, até mesmo, fazer algum programa cultural juntos. Iam ao teatro juntos, uma ou outra recepção, etc. Eloá não desconfiava de nada, mas o coração de Carol ardia de uma forma quase indisfarçável.
Carol decidiu que iria trocar de carro e, claro, procurou uma das lojas de revenda de automóveis de Gérson, “para dar preferência ao marido da amiga” – dizia ela para si mesma.
Ela sabia que não era nada disso. Na verdade o que queria era uma oportunidade de ficar a sós com Gérson e aí, – quem sabe? – talvez acontecesse alguma coisa.
Marcou o dia em que iria à loja, tudo de comum acordo com Eloá.
De fato, ela teve a sua chance. Gérson a esperava em seu luxuoso escritório com vidros fumê e belas cortinas escarlate que lhes garantiam total privacidade.
Recebeu a amiga e foi ao salão de exposições para que ela escolhesse o veículo que mais lhe agradaria.
Carol escolheu um carro último tipo, um conversível da moda que custava uma pequena fortuna para alguns.
– Você tem muito bom gosto – disse Gérson.
– Obrigada, mas não teria escolhido sem a sua ajuda.
Sozinhos no escritório privativo, não foi difícil a inocente conversa evoluir para algo muito mais apimentado e, quando deram por si, tinham consumado um amor que há muito se escondia em corações apaixonados. Gérson, também, era louco por Carol.
– Aceite este carro como um presente – ofereceu Gérson.
Carol não se fez de rogada e aceitou o mimo com muito prazer.
A partir daí foi uma questão de tempo e, logo, o casal repetia os encontros cada vez com mais frequência.
Um dia aconteceu o inevitável.
Eloá sentiu-se indisposta no trabalho e resolveu ir para casa para descansar o resto do dia. Ao chegar, estranhou ver o carrão da amiga estacionado nos jardins da bela mansão, na parte interna, sem a menor cerimônia.
“O que estaria Carol fazendo ali, em sua casa, àquela hora do dia?” – pensou a bela morena de verdes olhos feiticeiros.
A mansão tinha alguns empregados, mas, inexplicavelmente, naquele dia, nenhum deles veio abrir a porta para a patroa. Mais uma coisa estranha para Eloá.
Foi entrando, dirigindo-se ao quarto do casal e aconteceu. Pegou os dois no maior flagra.
Eloá não disse uma única palavra. Não teve forças para isso, enquanto Gérson e Carol se esforçavam em querer desculpar o indesculpável. Eloá apenas se retirou. Saiu de casa, pegou o carro e dirigiu sem destino algum.
Depois de algum tempo encontrou um barzinho, onde ela jamais tinha ido, e, inexplicavelmente, pediu uma dose de whisky. Tomou uma, tomou duas… até que ficou bêbada.
Um rapaz percebeu que aquela moça deveria estar passando por algum problema além do fato que ela não tinha mais nenhuma condição de dirigir. Foi até ela:
– Moça, posso ajuda-la?
Eloá olhou para o jovem e, sem dizer nada, deu-lhe um ardente beijo na boca e depois lhe disse:
– Leve-me para onde você quiser.
Na manhã do dia seguinte, Eloá acordou em um lugar estranho. Era um apartamento de classe média. Estava deitada em uma cama que não era a sua ao lado de um homem que não era o seu marido.
Fez um esforço de memória e se lembrou da traição cometida por Gérson e sua melhor amiga, Carol.
Apenas virou-se para o companheiro e repetiu o que fizera a noite toda: sexo.
Algum tempo depois foi embora, mas decidiu que não voltaria para sua casa. Teve um momento de lucidez e ligou para um advogado a quem explicou o que tinha acontecido e solicitou que cuidasse dos papéis do divórcio.
Mudou-se para um apartamento e, então, a sua vida deu uma reviravolta de cento e oitenta graus.
Passou a sair todas as noites e, sempre encontrava um parceiro diferente. Hora iam para o seu apartamento hora iam para um lugar qualquer. Só uma coisa importava: tinha que saciar a sua necessidade de sexo.
Algo acontecera com a mente da jovem transformando completamente a sua personalidade.
Repetiu esse tipo de vida por três anos seguidos. Não tinha a mínima ideia de quantos parceiros teve nesse tempo. O trauma por que passou fez eclodir algo que desencadeou um processo de ninfomania e ela não se dava conta disso.
Um domingo de manhã, acordou mais uma vez com um parceiro diferente em sua casa. Pediu ao homem que fosse embora e, após um banho, sentiu um desejo forte de ir a uma igreja. Precisava conversar com alguém, de preferência um padre. Não que quisesse se confessar, precisava apenas desabafar.
Chegou à igreja e esperou que a missa terminasse. Dirigiu-se à sacristia e disse que gostaria de falar com o padre.
Padre Onofre era um homem de perto de seus sessenta anos. Cabelos grisalhos, olhar e semblante de paz.
– A moça disse que quer falar em particular – disse Zeca, uma espécie de auxiliar da paróquia.
– Sente-se, minha filha – disse o padre.
A jovem sentou-se e, durante mais de uma hora, apenas chorou. Era a primeira vez em muitos anos que chorava.
Padre Onofre, pacientemente, esperou que ela desabafasse seu pranto e, quando viu que a jovem já respirava quase normalmente, perguntou-lhe:
– Quer me contar agora o que houve?
Eloá relatou tudo entre prantos e momentos de desespero. Contou como fora traída por sua melhor amiga que destruiu o seu lar e como a sua vida tinha se transformado em um inferno sem controle.
Com uma forte formação em psicologia, o padre ouviu tudo pacientemente e depois lhe disse:
– Você está doente e precisa se tratar. Vou lhe indicar um psiquiatra, amigo meu, um homem muito bom e sugiro que você siga o que ele lhe indicar.
Hoje Eloá vive à base de remédios tarja preta. Sai de casa apenas para trabalhar, ir à igreja ou, simplesmente, para conversar com padre Onofre.
Não está curada, mas vive com dignidade.
Gérson, que viu seus negócios afundarem lentamente, não suportou a proximidade da falência e cometeu suicídio há dois anos. Carol ficou com boa parte de sua fortuna e vive hoje em outro país e curte os benefícios que lhe trouxeram a sua traição.
O LENHADOR
Rio da Felicidade é uma cidadezinha pacata do sudeste do Brasil. Hoje, se muito, deve contar com doze mil habitantes. Fundada em 1846 por um expedicionário ainda na época do império, a cidade permaneceu isolada até hoje devido à dificuldade de acesso. Em uma região de montanhas, onde a temperatura jamais fica acima de 18º C mesmo no verão, o lugarejo é cercado por um verdadeiro jardim natural. Acácias se misturam a camélias, rosas de diversas cores e de singelas margaridas. Na primavera, a cidade parece um manto de beleza. Além disso, a população acostumada a viver entre flores, adotou o saldável costume de cultivar jardins. Não existe uma única casa na cidade que não tenha um belo jardim.
Arvores nativas frondosas como cedro e pau-brasil misturam-se a outras como mangueira e palmeira imperial que, importadas de outras regiões, adaptaram-se bem ao clima do lugar.
Cortando a cidade de norte a sul, um rio caudaloso, cristalino, que alterna momentos de placidez com a inquietação de suas águas à medida que se aproxima da maravilhosa Cachoeira dos Passarinhos, é chamado de rio da Felicidade, e empresta o seu nome à bela cidadezinha.
É um verdadeiro paraíso e, parece, vai continuar assim por muito tempo, porque para chegar lá é preciso subir 1435 metros em uma região de estrada de terra, extremamente tortuosa, mas que encanta e maravilha quem se arrisca ir até lá. Existe uma única pousada que oferece seis quartos para hospedar os poucos turistas que, de vez em quando, aparecem. Que continue assim – pensam os seus moradores.
Por volta de 1858 vivia ali um jovem de nome Euclides. Nascido e criado em Rio da Felicidade, era analfabeto, como quase todos os habitantes do lugar e vivia da caça, da pesca e da venda de lenha às famílias do lugar. Euclides era conhecido como “O lenhador”.
Rapaz alto e forte, tez queimada de sol, trabalhava do amanhecer ao anoitecer Tinha dois cavalos que ele chamava de Valente e Guerreiro, que o ajudavam na pesada tarefa de transportar a madeira que ele cortava, a machado, na floresta, para os seus clientes. Deixava na porta. A luz elétrica só chegou lá por volta de 1983 e, o calor produzido pelas toscas lareiras das casas era a única forma de as pessoas se protegerem do frio da região. Desta forma Euclides ia tocando a vida.
Tinha resolvido construir uma casinha em uma das margens do Rio da Felicidade, próximo da cachoeira, justo onde suas águas já estavam bastante revoltas. Ela gostava do som da cascata.
Do outro lado do rio morava Lourdes. Moça bonita, de olhos da cor de amêndoa, morena, lábios carnudos e vermelhos. À tardezinha, ela costumava sentar-se no alpendre de sua casa de madeira e ficava penteando seus longos cabelos negros. Era de uma beleza natural, quase selvagem.
Euclides, quando estava trabalhando na construção de sua casa, dividia sua atenção entre martelos, serrotes e a bela visão da morena do outro lado do rio. A família de Lourdes era cliente do rapaz, de quem comprava lenha. O pai era caçador e a mãe, dona de casa, como quase todas as mulheres daquela época.
Quando ia entregar lenha na casa de Lourdes, ele procurava um jeito de conversar com a moça que, muito tímida, só raramente lhe dirigia o olhar e o máximo que conseguia dizer eram monossílabos de concordância.
Euclides perguntava tudo o que a polidez de um jovem do campo permitia. Fora criado trabalhando duro desde criança, mas seu pai, que já tinha ido para o outro lado, lhe ensinara a tratar com as mulheres.
O fato era que, devido à dificuldade de atravessar o rio por falta de uma ponte, o contato de Euclides com a jovem Lourdes era muito raro e ele jamais tivera uma oportunidade de sequer lhe dizer que ela era a mulher de sua vida.
Em certo momento, Euclides começou a sentir falta da jovem donzela que penteava os cabelos ao cair da tarde.
Levava a lenha para a família e não via mais a moça. Até que um dia, conversando pela cidade, em um dos raros momentos de folga que tinha, Euclides ouviu a notícia que quase fez seu coração parar: o pai da moça tinha concordado com o pedido de casamento de um rico fazendeiro que morava a mais de cem léguas de distância.
A partir daquele dia, o jovem Euclides nunca mais foi visto na pequena Rio da Felicidade. Dizem que ele montou em Valente, levou Guerreiro como reserva, e foi se alistar nas forças brasileiras que combatiam na guerra do Paraguai.
1978. O governo decidiu, finalmente, construir uma ponte que unia as duas margens do rio da Felicidade.
O local escolhido foi próximo à Cachoeira do Passarinho porque ali era o local mais estreito do rio e onde seria mais fácil construir os acessos.
A ponte, uma obra simples, em forma de arco, fora projetada para passar animais, carros de boi, pedestres e veículos motorizados em mão única, afinal, o movimento de carros ali, felizmente, até hoje, é muito pequeno.
Em menos de um ano a ponte estava pronta e fora inaugurada pelos políticos que nunca mais voltaram lá. O povo não sentia a menor falta deles.
A vida melhorou para todo mundo. As distâncias diminuíram e as pessoas que moravam em uma margem ou outra passaram a se falar com mais facilidade.
Ali perto, havia uma casa de madeira, abandonada há muitos anos que se deteriorou sem sequer ter sido concluída. Na verdade restava pouca coisa da construção, mas ainda se podia notar que tinha um alpendre e três compartimentos.
O engenheiro responsável pela construção da ponte se encantou com o lugar e achou que seria ótimo ter uma casa ali para quando quisesse fugir das atribulações da cidade grande. Na verdade ele gostava do cheiro do mato e se encantara com a Cachoeira dos Passarinhos e pelo som produzido pelas águas que se precipitavam de uma altura de mais de trinta metros.
Informou-se quanto ao proprietário da casa abandonada e, na prefeitura, ficou sabendo que a construção estava abandonada há mais de cem anos e que, na verdade, o terreno pertencia à prefeitura da cidade.
O jovem engenheiro, que se chamava Hernani, adquiriu o lugar e, rapidamente construiu ali uma casa. O local tinha uma bela varanda onde o jovem engenheiro gostava de ficar sentado, à tardezinha, assistindo o passar das inquietas águas do rio da Felicidade. Sua casa ficava a apenas vinte metros da ponte.
Do outro lado do rio, ele reparou que uma bela jovem também gostava de ficar no alpendre de sua casa penteando os seus lindos cabelos longos e observando o passar das águas do rio.
Aquilo, mesmo de longe, criou uma certa simpatia de um para com o outro. Um dia, Hernani resolveu atravessar a ponte e se apresentar diante da jovem para conversar.
Aí aconteceu algo que Hernani jamais imaginara. Os seus olhos encontraram os olhos da bela jovem e uma longa estória de mais de cem anos passou em sua frente como um filme. Ele a reconheceu e, sem titubear, disse-lhe: vim apenas dizer-lhe que ainda a amo.
RAIO NEGRO
Uma planície sem fim.
O verde da grama abundante, um riacho que corre preguiçosamente tentando se desviar das pedras, as sombras de árvores frondosas e a liberdade. Uma liberdade também sem fim.
Essa era a vida, o dia a dia daquele alazão negro. Corcel vistoso de pelo brilhante ao natural refletindo a luz da lua cheia ou esplendor dos raios do sol. Era lindo a qualquer hora do dia ou da noite.
Comandava uma tropa de trinta outros cavalos. A sua liderança acontecia não só pela força e opulência que ostentava ante os seus seguidores mas, principalmente, pela sua inteligência e perspicácia. Sempre identificava o inimigo a tempo de preparar uma boa defesa ou, simplesmente, fugir. A estratégia adotada dependia do inimigo e da situação.
Um dia ele chegou.
Mansamente, como quem não quer nada. Primeiro ficou observando de longe e, rapidamente o seu jovem coração se apaixonou. Cedeu diante dos encantos daquele belo exemplar de equino, livre como o vento, veloz como um raio e forte como o maior de todos os touros. Sua crista, de um castanho claro, contrastava com o seu pelo negro reluzente e combinava, discreta e sabiamente com as manchas brancas que tinha nas quatro patas e em seu dorso. Era uma visão deslumbrante para o rapaz.
O jovem ficou ali, escondido entre algumas pedras, um dia, dois, três, vários dias.
A princípio só paquerando o animal depois, tomou a ousada decisão: tentaria ser seu amigo.
O que o rapaz não sabia era que o alazão já tinha percebido a sua presença desde o primeiro momento. Suas narinas apuradas detectaram o seu cheiro no qual o animal não percebeu nenhum perigo.
Audaciosamente, no oitavo dia de espreita, Pedrinho – assim se chamava o rapaz – se aproximou do animal.
Um relinchar de aviso se fez ouvir e Pedrinho resolveu voltar. Como que para completar o que queria dizer, o belo cavalo negro empinou as patas dianteiras e, olhando na direção de Pedrinho bufou várias vezes. O aviso estava dado: que ficasse a distância.
Acontece que o jovem, além de audacioso, era, também, teimoso e, mais uma vez tentou se aproximar do animal e mais uma vez foi rechaçado.
Pedrinho não se escondia mais. Simplesmente ficava ali, sentado em uma pedra “conversando” com “Raio Negro” – resolveu dar esse nome para o bicho sem nem mesmo pedir licença. Vejam só!
O rapaz contava sua vida. Dizia que tinha que ir à escola porque sua mãe dizia que seria bom pra ele. Que fazia os trabalhos de casa, como por exemplo, apanhar água do poço, dar de comer aos porcos, ordenhar as vacas e, no verão, tosquiar as três ovelhas que a família possuía. Ah! Havia também Tinho e Kanta, um cavalo e uma égua que ajudavam seu pai no trabalho de arar a terra e outros mais pesados.
Gostava deles, é claro, mas seu coração tinha batido mais forte quando viu o belo alazão negro.
Conversava durante várias horas com o seu Raio Negro. Às vezes até inventava estórias, contava umas mentirinhas engraçadas para passar o tempo e divertir aquele semideus das planícies.
Um dia, Pedrinho falou tanto, mas tanto, que acabou adormecendo à sombra de uma pedra.
Acordou algum tempo depois – ele nem sabe dizer por quanto tempo dormiu – com o relinchar de Raio Negro, quase em cima de si e com o vigoroso bater dos cascos do animal em cima de alguma coisa.
Pedrinho, assustado, sem entender o que estava acontecendo, olhou para o local onde o animal batia repetidamente com os seus casos e viu uma mortífera cobra cascavel com a cabeça esmagada.
O alazão das planícies tinha salvo a vida de seu misterioso amigo.
Pedrinho aproximou-se do animal que, docemente, se deixou acariciar no pescoço e no dorso.
Estava selada, ali, uma grande amizade.
Os anos se passaram e Pedrinho nunca tentou aprisionar o animal. Continuou a visitá-lo todos os dias até que, finalmente, Raio Negro permitiu que ele o montasse.
Dessa forma, Pedrinho passou a fazer belíssimos passeios pelas planícies montado, em pelo, em um corcel negro, até o fim dos seus dias.
Até hoje é comum na região pessoas dizerem que viram um jovem montado em um corcel negro, com manchas brancas nas patas e no dorso, sem selas ou arreios, galopando alegremente pelos verdejantes campos do lugar.
UM PASSEIO NO PARQUE
Em um belo início de tarde de primavera, Denise passeava com seu cão da raça Mastim Tibetano, com pedigree desde a oitava geração. Os agradáveis doze graus daquela calma manhã combinavam bem com o suave trânsito de carros que voam a baixa altitude ou, simplesmente, movimentam-se pelas limpíssimas ruas da cidade, algumas vezes sem ninguém a bordo ou com apenas um passageiro. Orientados por um simples, porém, eficiente sistema de sinalização ou pela internet, os veículos deixaram de precisar de motorista há várias décadas e, agora, os passageiros tinham total conforto e segurança para se movimentarem pelas ruas e avenidas das pequenas cidades do mundo.
Nenhuma cidade tinha mais do que setenta mil habitantes.
Denise tinha acabado de aterrissar o seu carro no parque da cidade onde plantas ocidentais, como a Sakura japonesa, misturam-se com outras, americanas como a Maple canadense ou o Cedro-do-Líbano ou, ainda, uma singela bananeira grega ou indiana.
Era o ano de 2135 e a população mundial reduzira-se a pouco mais de oitocentos milhões de habitantes.
A vida tinha ficado mais fácil para todos. A última guerra acontecera no longínquo ano de 2042 quando as duas últimas superpotências quase se dizimaram levando consequências trágicas à população mundial.
Depois disso, todos os países do mundo, sem exceção, reuniram-se na pequena cidade de West Coast, na Zona Zelândia, para assinarem um acordo de paz e, pela primeira vez na história da humanidade, uma reunião daquele tipo conseguiu superar todas as expectativas.
Não apenas foi assinado um tratado de paz como, também, por proposta de um dos menores países daquela época, foi criado um órgão com jurisdição internacional, com poderes administrativos sob todas as nações e adotada uma lei mundial, ou seja, uma lei à qual todos os países do mundo estariam submetidos, que foi, a Lei do Filho Único. A partir daquela data, nenhum casal poderia ter mais de um filho, sob nenhuma circunstância.
Todos os países, em nome da paz mundial e para evitar o crescimento descontrolado da população do planeta, que naquele ano, superando todas as expectativas dos cientistas já tinha ultrapassado a casa dos dez bilhões de habitantes, decidiu tomar essa decisão como forma de evitar o colapso de água e alimentos na Terra o que, certamente, ocasionaria mais guerras, fomes, doenças e destruição.
Foi a decisão mais acertada da História da Humanidade.
Os países passaram a incentivar o casamento com pessoas do mesmo sexo como forma de evitar a procriação, proibindo, terminantemente, qualquer forma de inseminação artificial para evitar acidentes como o nascimento de gêmeos, na verdade, a única possibilidade que permitia que um casal tivesse mais de um filho, desde que o processo de gestação tivesse sido absolutamente natural. Se um casal não podia ter filhos, então não teria filhos. Essa era a face dura do projeto, mas os resultados, hoje, podiam ser vistos facilmente em qualquer parte do planeta.
As riquezas foram distribuídas de forma equânime, há mais de cinquenta anos não acontecia a extinção de qualquer animal ou planta, todas as doenças estavam sob total controle da medicina e a expectativa média de vida dos habitantes era de cento e vinte e três anos.
Não havia desemprego, déficit de moradias, ditadores em pequenos países, ódios por causas racistas ou religiosas, ou seja, a humanidade vivia uma época próspera e feliz.
Denise já tinha terminado o seu dia de trabalho. Sua jornada ia das nove horas da manhã ao meio dia. A sua filha, Scarlet, ficava na escola das nove horas até as 18, horas e, depois, voltaria para casa em seu carro guiado pelo sistema de controle da cidade. O marido, Henry, se reuniria a ela em alguns minutos e continuariam seu singelo passeio observando os jardins suntuosos daquele belo parque.
Pararam para almoçar em um pequeno restaurante que servia pescados e saladas naturais e tomaram um bom vinho, produzido ali mesmo, na sua cidade. Afinal, todas as formas de tecnologia eram compartilhadas, inclusive aquelas relacionadas à agricultura.
O analisador de saúde de Henry vibrou. O homem olhou e leu a mensagem que indicava uma pequena alteração no seu nível de audição – sintoma comum em uma pessoa de noventa e cinco anos – e informava-lhe os medicamentos que deveria tomar e os procedimentos que deveria adotar para evitar a progressão dos sintomas. Informava-o, também, que o sistema iria intensificar o monitoramento de sua audição e, em caso de qualquer indício de agravamento ou em caso de não haver reversão em quinze dias uma consulta já estava marcada para as quinze horas ou, em caso de impossibilidade de seu comparecimento nesse horário, que ele informasse quando estaria disponível.
Henry abraçou a sua Denise e ambos continuaram seu passeio pelo parque, quando chegassem em casa, os medicamentos já estariam lá e, então, começaria o seu tratamento calmamente.
NÁDIA
Yuri Tchecov tinha vinte e oito anos e nunca tinha trabalhado na vida. Dirigia um carro esporte do ano, presente de sua mãe, frequentava as altas rodas da sociedade, namorava as moças mais bonitas e bem vestidas da cidade e jamais se preocupara com qualquer coisa. Tinha tudo a seu tempo e hora. Ele tinha nascido, como se diz, em berço de ouro.
Educação refinada, bem apessoado, sorriso fácil, o rapaz não tomava conhecimento das dificuldades de ninguém. O fato de jamais ter passado por quaisquer problemas na vida fez com que ele não se importasse com as pessoas e seus sentimentos. Era extremamente egoísta e, até mesmo, desonesto. Se fosse para levar vantagem em alguma coisa Yuri era capaz de tudo.
Filho único, pais multimilionários, vida boa e fácil, enfim, era um “bon vivant”. A sua educação passara pelo ensinamento de línguas estrangeiras, um curso de direito e muita experiência no exterior. O rapaz era bastante conhecido na cidade e, sabia-se, deveria herdar um verdadeiro império industrial e comercial.
Ivan Tchecov, o pai, era um rico empresário. Fabricava e vendia compressores industriais e tinha filiais em vários países da Europa. Um dia, o filho que fora criado cercado de riquezas e proteção, deveria gerir todo o conglomerado.
Ivan não sabia o que era perder. Desde criança fora acostumado a focar seu pensamento na vitória e, com um faro impressionante para os negócios, tinha conseguido acumular uma fortuna invejável. Ateu por convicção, bem como sua esposa Lana, mãe de Yuri, criaram o filho com o mesmo pensamento. Para aquela família o que interessava eram os bens materiais. Nada de sentimentalismos, caridades e, muito menos e principalmente, religião. “Isso é coisa para os fracos”, costumava dizer o empresário.
Sendo assim, não se poderia esperar do jovem Yuri outra coisa a não ser que fosse um “playboy” desinteressado pelas pessoas e por quaisquer valores morais ou espirituais.
Em uma das inúmeras recepções que a família Tchecov costumava oferecer à altíssima sociedade da cidade, Yuri conheceu Nádia, uma jovem com as mesmas origens da família Tchecov. Morena, cabelos longos, olhos negros penetrantes e de uma inteligência rara. A moça encantava a todos.
A amizade entre os dois jovens agradou em cheio a Ivan e Lana e, em pouco tempo os dois namoraram e ficaram noivos. O casamento estava marcado para muito em breve.
Os pais de Nádia, também muito ricos, estavam igualmente satisfeitos com aquela união que, de fato, em menos de um ano consumou-se em casamento. O jovem playboy tinha sido fisgado.
Havia, no entanto, uma diferença muito grande entre os pensamentos das duas famílias: enquanto Yuri e seus pais só pensavam nos negócios e desprezavam religiões, quaisquer que fossem, Nádia e sua família, eram cristãos e afetos a todos os sentimentos humanitários. Costumavam frequentar a igreja Católica e, não raro, participavam de campanhas para ajudar pessoas atingidas por tragédias além de contribuírem, regularmente, para as obras de caridade de sua paróquia.
Acontece que Yuri, apaixonado, escondeu essa realidade dos pais que só ficaram sabendo depois do casamento.
– Mas que absurdo! – disse Ivan. Por que você não me falou isso antes?
– Essa estória de que Deus criou o homem é pura invenção para atrair os bobos a deixarem seus bens para essas igrejas e seus pastores desocupados – disse Lana.
– Deus não criou o homem – continuou Ivan – e sim, o homem que criou Deus para se esconder de suas fraquezas.
Yuri comungava plenamente daquele pensamento e, aos poucos, a empolgação ou a paixão de primeiro momento que sentiu ao encontrar a bela Nádia foi se dissipando e, em breve, o casamento dos dois não passava de uma representação.
Nádia, no entanto, fora criada sob fortes alicerces religiosos que defendiam a família e ela decidiu que não iria desistir assim, tão facilmente, de sua união, pelo contrário, lutaria por ela.
A moça apegou-se à sua santa padroeira, N. S. das Graças, pedindo-lhe que a ajudasse a reconquistar o coração de seu marido e que, de alguma maneira, mostrasse à família Tchecov que estavam errados em seu pensamento egoísta e distante dos ensinamentos cristãos.
Ivan, agora com setenta e dois anos, sempre gozara de boa saúde, no entanto, vinha sentindo dores abdominais frequentes, mas não queria ir a médicos, na verdade, pouquíssimas vezes na vida tinha conversado com um desses profissionais. Desta vez, no entanto, as dores foram ficando cada vez mais amiúde e, com muita insistência da esposa acabou visitando um Clínico Geral que, após alguns exames preliminares, encaminhou o paciente a um gastroenterologista que, rapidamente, diagnosticou um câncer no pâncreas, um dos mais agressivos e mortais que podem afetar o ser humano.
Dr. André foi claro e, diante da esposa informou o paciente que ele teria poucos meses de vida, no máximo, quatro. O quadro era irreversível.
A notícia atingiu a família como uma bomba. Evidentemente, procuraram outros profissionais, mas o diagnóstico se confirmava sempre. O magnata Ivan Tchecov estava condenado à morte.
Aos poucos, enquanto o patriarca definhava a olhos vistos, a família foi se resignando com o seu inevitável fim. Todos, menos uma pessoa: Nádia.
A moça, esquecendo todas as injustiças cometidas pelo sogro e as humilhações a que fora submetida, apegou-se com sua protetora pedindo-lhe que curasse o homem daquela enfermidade que, até então, mostrara-se incurável para os médicos, mas que ela acreditava ser possível para os santos poderes de N. S. das Graças.
A moça rezava, ia à igreja e pedia com muita fé à Santa que a atendesse.
Yuri, ao saber que a esposa tinha assumido essa atitude, em vez de ficar grato, revoltou-se ainda mais lhe dizendo que aquilo era algo estúpido e que o que ela estava fazendo era pura perda de tempo e que ela deveria, pelo menos, respeitar os últimos dias de vida de seu pai.
A jovem, no entanto, não desistiu e continuou com suas orações. O fato é que o assunto chegou ao conhecimento do moribundo e, para surpresa geral, ante a proximidade da morte, mandou chamar a nora a quem pediu que intensificasse as orações.
Lana, ante o medo de perder o esposo, passou a acompanhar a jovem nas idas à igreja e, agora, na terceira idade, estava aprendendo a rezar.
Apenas uma pessoa não aceitava aquela situação: Yuri. Sua arrogância não permitia que ele aceitasse uma ajuda vinda de “algo” que ele não podia ver. Se os melhores médicos não puderam fazer nada, então, o caso estava simplesmente perdido.
No entanto, Ivan, inexplicavelmente, começou a melhorar. Tanto que os médicos, antes incrédulos quanto a uma eventual recuperação, começaram a visitá-lo com mais frequência, não pela necessidade clínica, mas, por absoluta, surpresa. O paciente, antes condenado à morte, estava se recuperando.
Yuri continuava a achar que aquilo era consequência dos medicamentos e porque seu pai sempre fora um homem forte.
Dentro de dois meses o patriarca saiu do hospital e, totalmente mudado, dirigiu-se à igreja com a esposa e a nora para agradecer a graça recebida.
Era domingo, e a família deveria almoçar junto. As orações de Nádia tinham conseguido não só a cura do sogro, mas provocado uma mudança no comportamento daquela família que, agora, à exceção do filho, todos estavam convertidos ao cristianismo. A próxima missão seria fazer com que ele também mudasse de ideia.
Quando chegaram a casa, não encontraram o rapaz na sala, como era de costume, acharam-no em seu antigo quarto contorcendo-se com insuportáveis dores abdominais.
Levado às pressas a um hospital, exames radiológicos indicaram algo insuspeito até o momento: o rapaz estava com um tumor no pâncreas, igual ao que acometera o seu pai há poucos meses. O médico que o atendeu não lhe deu nenhuma esperança de cura.
FRANK
– Pai, quando é que eu vou ganhar o meu cachorrinho de presente? – perguntava Paulinho quase todos os dias.
Ele tinha apenas cinco anos e aquele já era um sonho antigo.
O menino queria muito ter um cãozinho e, por isso, não dava sossego a Ramiro, seu pai.
– Está bem – respondeu, um dia, resignado, o pai que não gostava muito de cães, talvez por algum trauma de infância ou, sei lá o quê. O fato era que ele não gostava, mas, ante tanta insistência do filho decidiu comprar para o garoto um filhote de pastor alemão.
– Você vai ganhar um cãozinho no dia do seu aniversário, está bem?
Os olhinhos do menino brilharam de alegria. O dia em que ele completaria seis anos estava perto, faltavam apenas algumas semanas e ele mal podia esperar.
O dia, finalmente chegou. Para o pequeno Paulinho pareceu durar uma eternidade, mas, chegou.
O menino acordou cedo e decidiu não cobrar o pai, isso com palavras, porque os seus olhinhos expressavam mais do que qualquer discurso.
Hora do almoço e, finalmente, Ramiro chegou. Trazia uma caixinha com alguns orifícios e um lindo laço vermelho fechando-a. Não era difícil descobrir o que havia lá dentro.
Ramiro chamou o filho e lhe disse:
– Meus parabéns, meu filho. Aqui está o seu presente. Pode abri-lo.
O garoto não cabia em si de felicidade. Lá estava ele. Um belíssimo filhote de pastor alemão, capa preta. Muito fofo e, quando viu o menino, latiu mansamente e lambeu carinhosamente as mãozinhas que o tiraram da caixa. Estava selada uma grande amizade.
– Esteja certo, Paulinho, que este cãozinho será o seu maior amigo. Seja amigo dele também e vocês serão muito felizes.
– Sim, pai! – respondeu o menino não cabendo em si de felicidade.
Rose, a mãe, aproximou-se do menino e perguntou-lhe:
– Qual é o nome dele, meu filho?
– Frank – respondeu o menino.
O menino pegou o cãozinho no colo e correu para o quintal dizendo:
– Vamos, Frank. Vou lhe ensinar todos os truques.
Os anos passaram e, agora, Paulinho tinha doze anos e Frank era um belo cão de guarda de seis anos.
Pela manhã, os dois iam juntos para a escola. Todos os amiguinhos de Paulinho adoravam o cão e ele correspondia com amigáveis lambidas em todas as crianças.
O cão ficava na porta até Paulinho entrar na escola, depois, voltava sozinho para casa a três quarteirões dali e, ao meio dia, pontualmente, estava de volta esperando seu fiel amigo sair e voltar com ele para casa. Pontual e fiel.
Paulinho andava de bicicleta pelas ruas do bairro e Frank corria ao seu lado. O menino ia jogar futebol e o cachorro “era o bandeirinha”, não saía do lado do campinho, enfim, o cão participava de todos os momentos da vida do seu amado dono.
Em casa as pessoas tinham aprendido a amá-lo também, até mesmo Ramiro, que um dia resolveu contar porque não gostava de cães – tinha sido mordido por um quando criança – rendeu-se aos encantos do belo pastor alemão.
Excelente cão de guarda, Frank passava as noites na sua casinha, próxima da garagem da casa da família e, ao menor sinal de intrusos, o seu rosnar de poucos amigos se fazia ouvir. Eram dias tranquilos e felizes.
Os dias começavam cedo na casa de Paulinho e, às sete horas, o menino ia pra escola e os pais para o trabalho. Era uma segunda-feira como outra qualquer.
O menino caminhava brincando distraidamente com seu cachorro quando aconteceu. Ouviu-se o cantar dos pneus e o estridente som da buzina.
A seguir dois baques secos arremessaram o menino e o seu cachorro bem longe.
O motorista não teve culpa porque os dois atravessaram a rua repentinamente e ele não teve tempo de frear. Muita gente acorreu para socorrer o menino que jazia desacordado em uma grande poça de sangue.
A ambulância chegou, colocaram o menino dentro dela que partiu velozmente com seu grito estridente rasgando aquela fria manhã de inverno.
Frank estava estendido no chão. Ninguém o socorreu. Sequer foram ver se ele estava vivo, mas ele estava vivo e percebeu quando colocaram o menino na ambulância e em que direção ela foi.
Sob o olhar espantado dos curiosos, o cachorro se levantou, bastante machucado, mancando de uma perna e, com muita dificuldade, seguiu na direção que tinha tomado a ambulância.
Foi uma caminhada difícil para o pobre Frank. Sangrando, com uma pata fraturada que deveria estar doendo muito, o cão, após, três horas de penosa caminhada chegou, finalmente, ao hospital. Resoluto, tentou entrar, mas, evidentemente, foi barrado.
O animal, então, resolveu ficar em frente ao hospital de plantão.
Viu quando os pais de Paulinho chegaram e ele latiu, mas ninguém ouviu. Estava decidido, não sairia dali até “ter notícias” do menino.
Os dias passavam e os ferimentos de Frank pioravam. A pata estava muito inchada e ele, sem alimentação, estava ficando cada dia mais fraco. Não comia nada e, apenas quando chovia, ele conseguia tomar um pouco da agua que escorria pelas canaletas de esgoto da rua.
Finalmente, após vários dias, Frank viu uma figura conhecida sair de cadeira de rodas do hospital.
Latiu, fraco, mas latiu. Foi o suficiente para o seu amigo ouvir o seu pedido de socorro misturado com um desabafar de felicidade.
– Esperem – gritou o menino. É Frank.
De fato, era mesmo o animal.
– Levem-me até ele, rápido – pediu o menino.
Ramiro empurrou a cadeira de rodas na direção de onde tinha vindo o débil latido e viram o pobre Frank em um estado deplorável.
O animal, em um último esforço, conseguiu se levantar e apoiar as patas dianteiras sobre os joelhos de Paulinho. A seguir, encostou a cabeça em suas pernas e, simplesmente, morreu.
Ele só estava esperando para saber as notícias de seu amigo.
ROSAS VERMELHAS PARA SEMPRE
Cássio e Mariana eram colegas de faculdade. De diferentes classes sociais, os dois só se encontravam nas aulas ou nos intervalos. Davam-se muito bem. Era visível o quanto um se sentia bem na presença do outro e Cássio tinha um costume que agradava bastante a Mariana: Todos os dias ele lhe trazia um pequeno presente. Podia ser uma bala de chocolate, uma flor, ou, simplesmente, mandava-lhe uma mensagem pelo celular desejando-lhe um bom dia.
Estavam já no último ano do curso de Direito, mas iriam seguir destinos diferentes. Cássio pretendia ser advogado criminalista e Mariana tinha o sonho de ser juíza.
Nos fins de semana a diferença social separava-os. Mariana morava em um bairro de classe alta, filha de pessoas de alto poder aquisitivo e Cássio morava em um subúrbio distante, perigoso e em uma realidade totalmente diferente de sua amiga.
O fato era que ambos nutriam um amor impossível, um pelo outro. Impossível porque se Mariana quisesse assumir um romance com um rapaz da classe social de Cássio teria, inexoravelmente, que romper com seus pais. Era difícil dizer-se quem era mais prepotente, se o pai, Eduardo, ou a mãe da jovem, Josefina. Ele, empresário de grande porte, milionário, acostumado a conviver com pessoas de seu nível, sonhava com um casamento para sua filha que estivesse dentro do que ele consideraria compatível com a sua classe social.
A mãe, por sua vez, vivia as futilidades de uma “socialite”. Sempre presente nas grandes reuniões sociais, chás beneficentes que, na verdade, só serviam para aparecerem nas colunas sociais, acharia o maior dos absurdos que sua filha, criada com tanto mimo, bonita, moça de tanta cultura, acostumada aos grandes salões do país e da Europa resolvesse namorar com um rapaz da periferia. Casar-se, então, seria, para ela, melhor a morte, porque, aí “a humilhação seria grande demais.
Os dois jovens se formaram e cada um seguiu o seu caminho. O fato era, no entanto, que o jovem Cássio, agora que já não via a sua amada, contentava-se em lhe enviar uma mensagem carinhosa pelo celular. Isso era diariamente.
Mariana fora preparada desde pequena para ser juíza. Filha única, não tendo aptidão para os negócios do pai, demonstrava firmeza em suas convicções o que agradava bastante Eduardo e Josefina.
Logo após a conclusão do curso de Direito, Mariana matriculou-se em uma escola preparatória para os concursos da área da magistratura e não foi nada difícil para o pai, milionário, conseguir um emprego onde ela adquirisse a necessária experiência de prática forense.
Cássio, por capricho do destino, teve que se mudar para uma outra cidade, mas, antes de partir, resolveu despedir-se de sua amada Mariana.
Primeiramente, comunicando-se sempre por telefone, informou-lhe de suas intenções, planos de se mudar para uma outra cidade e que gostaria de se despedir dela. Mariana, em um momento de ingenuidade, disse ao jovem que poderia recebê-lo em sua residência e que o esperaria no dia seguinte à noite.
Era uma quarta-feira e, por volta das vinte e uma horas o rapaz chegou à belíssima mansão da família de Mariana.
O mordomo anunciou o jovem na imponente sala de estar onde a família conversava.
Os pais de Mariana, evidentemente, esperavam que o rapaz fosse o filho de algum empresário ou um juiz de renome, enfim, algum endinheirado que estivesse fazendo a corte à sua filha.
Quando o rapaz entrou na sala, os seus trajes simples denunciaram a sua origem.
O pai ficou visivelmente decepcionado e Josefina quase teve um infarto.
Mariana percebeu o clima hostil que se formou, mas, mesmo assim, decidiu apresentar o rapaz aos pais.
Não foi nada agradável. Eduardo sequer estendeu a mão para cumprimenta-lo enquanto Josefina, simplesmente, retirou-se do ambiente sem dizer uma única palavra ao recém-chegado.
Cássio engoliu em seco e, para não deixar a sua Mariana ainda mais constrangida, apenas deu-lhe um beijo no rosto e disse adeus.
A moça acompanhou-o até a porta, mas não teve coragem de olhar em seus olhos na despedida. Se o fizesse, perceberia duas lágrimas que insistiam em rolar pelo rosto do pobre rapaz.
A partir daquele dia, Cássio parou de lhe mandar mensagens pelo celular, mas, o que sentia por Mariana era tão forte que ele passou a enviar-lhe rosas vermelhas, pelo menos uma vez por mês.
O tempo passou. Agora Mariana já era uma juíza e, concidentemente, teve a seu encargo o caso de um assassinato de um jovem acontecido alguns anos atrás.
Tratou-se de um assalto. A vítima caminhava distraidamente pelas ruas do bairro nobre, próximas da casa de Mariana quando foi abordado por dois sujeitos que o ameaçavam com armas de fogo. O homem entregou-lhes todos os seus bens, mas, mesmo assim, por absoluta maldade, os bandidos não tiveram piedade e mataram o rapaz com dois tiros no coração.
O caso não teve muita repercussão na mídia porque situações como aquela aconteciam já corriqueiramente no país inteiro. Era apenas mais um caso de latrocínio.
O rapaz morto, coincidentemente, chamava-se Cássio, também, mas é claro que não poderia ser o seu Cássio, pensava Mariana, porque ela continuava recebendo as rosas vermelhas pelo menos uma vez por mês e quem as mandava era ele mesmo.
Acontece que, ao estudar o caso mais profundamente, a jovem deparou-se com as fotos do crime e, ali, reconheceu, no homem assassinado, o seu querido Cássio.
– Não pode ser ele – pensava ela – mesmo reconhecendo nas fotos o seu antigo colega de faculdade e o grande amor de sua vida.
Levantou a situação desesperadamente e, afinal, chegou à conclusão da estória.
O jovem Cássio, após a grande desilusão e humilhação a que o submeteram os pais de Mariana, mudou-se, de fato, para uma outra cidade, onde, com muito trabalho, conseguiu montar um escritório de advocacia tendo ficado famoso e, agora, bem-sucedido, voltava para, mais uma vez tentar conquistar os pais de Mariana, porque o coração da jovem, ele sabia que era seu.
Mas o destino já tinha decidido que aquele amor não daria frutos e tratou de colocar no caminho do jovem os dois latrocidas que acabaram com sua vida. Antes de ser morto, no entanto, o rapaz, agora muito bem financeiramente tinha passado em uma floricultura e encomendado um buquê de rosas vermelhas que deveriam ser enviadas para a sua querida Mariana por vários anos, uma vez por mês.
TIAGO E ARTUR
Edmundo Oliveira Bastos era juiz. Homem justo e rigoroso, temente a Deus, ponderava sempre com esse sentimento quando tomavas as suas decisões. Viera de família humilde, lá do interior do nordeste, oitavo filho de uma prole de onze e sempre teve que se virar sozinho na vida. Profundamente estudioso e com grande facilidade para redigir, admirador dos grandes pensadores e estadistas, não foi difícil decidir-se pelo estudo das leis.
Quando chegou a São Paulo, quarenta anos atrás, o seu maior patrimônio era a sua perseverança. Tinha que vencer na vida e teria que ser honestamente, sem pedir favores a ninguém, sem infringir as leis nem desrespeitar as pessoas.
Com esse pensamento, aos vinte e cinco anos de idade formou-se em Direito e aos vinte e sete já era juiz, aprovado em concurso público em primeiro lugar.
Tornara-se um homem obcecado pelo trabalho e pela justiça. Jamais houve um dia na vida, depois que se tornou juiz, que tivesse trabalhado menos de catorze horas. Tirava uma folga nos fins de semana quando se dedicava às suas leituras favoritas. Lia Nietsche, Confúcio, Shakespeare, etc além, é claro dos juristas mais renomados do planeta. Fluente em inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e russo era o que se poderia chamar de um grande intelectual. Também já tinha lido as biografias de Júlio César, Napoleão, Hitler, Churchil, Mao Tsé Tung, Ho Chi Min e de todos os grandes líderes que já passaram pela face da terra, incluindo aí, é claro, Jesus Cristo.
Casado com Dona Guiomar D’Andrada Bastos, mulher de família aristocrata, culta tanto quanto o marido, mas que abdicara de ter uma carreira profissional para se dedicar à família.
O casal teve apenas um filho, Pedro e um neto, Tiago. Talvez os nomes dos descendentes do juiz Edmundo até tivessem alguma coisa a ver com a fé religiosa dele. Era um homem extremamente respeitado, tanto no trabalho, quanto em casa – se bem que, se alguém quisesse dizer, temido, em vez de respeitado, não estaria errando muito. Fazia questão de que os funcionários do prédio classe A, onde morava, o chamassem de doutor e, mesmo sua família, inclusive sua nora, o tratava com um respeito quase feudal.
Mas o juiz Edmundo tinha um ponto fraco: Era louco por seu netinho, de seis anos, inteligente e extremamente carinhoso com os avós. Na verdade, era a única pessoa na terra que tinha liberdade de brincar com o magistrado.
Heitor Capistrano era professor universitário. Lecionava história em uma faculdade particular e em uma das grandes Universidades Federais do país. Era um homem de classe média baixa, haja vista que, por aqui, os salários dos docentes nunca foram considerados com seriedade.
Heitor era um homem simples, bondoso, adorado por seus alunos e por seus colegas de trabalho. Tinha casado com Helena, também professora universitária que lecionava filosofia em várias faculdades particulares e, tal qual seu marido, era profundamente querida por todos.
Heitor e Helena eram convidados a todas as formaturas das universidades. Sempre eram escolhidos para padrinhos de algum formando e, se algum professor tivesse que fazer um discurso de despedida, escolhiam, sempre, um dos dois.
Tiveram, uma única filha que lhes deu um netinho chamado Artur e que, agora com seis anos, demonstrava ter afinidade com os livros, posto que se saía muito bem na escola sem precisar que os pais ficassem cobrando-o por qualquer coisa.
Tudo ia muito bem para as duas famílias dentro da realidade de cada uma. Eram realidades díspares, mas quem foi que disse que é preciso ser professor ou juiz para ser feliz? Ou infeliz?
Um dia, Helena começou a notar uma pequena deformidade no rosto do pequeno Artur. Começou com alguma coisa que parecia um pouco como se ele estivesse com a boca torta.
Correram para o médico que disse que o menino tivera um leve AVC – Acidente Vascular Cerebral – mas que, se tivessem os cuidados necessários dali pra frente, não aconteceria de novo e o garoto poderia ter uma vida absolutamente normal.
Passados seis meses do episódio do AVC, o pequeno Artur apresentou uma distorção no alinhamento dos olhos, como se um estivesse ficando mais baixo do que o outro. Já estava tão acentuado que deu para os pais perceberem.
Correram ao oftalmologista que detectou um pequeno relaxamento muscular na face que provocara aquele desalinhamento. Com alguma medicação e fisioterapia tudo estaria resolvido.
Recuperado dos problemas anteriores e, agora já com oito anos, o pequeno Artur começou a apresentar problemas na fala e falta de concentração. Os pais levaram o menino a um psicólogo que recomendou um tratamento contra dislexia e a consulta com uma fonoaudióloga.
Só que desta vez, o quadro de Artur não se reverteu, pelo contrário, voltou o desalinhamento nos olhos, a boca entortou novamente e o garoto já não tinha firmeza para andar.
Os pais passavam de médico em médico e nenhum deles chegava a qualquer diagnóstico. Recomendaram-lhes uma viagem a um país mais desenvolvido porque, “quem sabe, se a medicina por lá não estava mais avançada?” Diziam os amigos.
De fato, após uma viagem à Europa o casal voltou com o diagnóstico de uma doença raríssima, autoimune, que provocava a deterioração dos órgãos, músculos e nervos do menino. Em breve, disseram os médicos, ela chegaria a algum órgão vital como rim, pulmão ou coração.
Mas, nem tudo estava perdido. Havia um medicamento em uso, já liberado em alguns países da Europa que o menino tinha tomado enquanto esteve fora do Brasil em função do qual apresentara resultados fantásticos. O menino melhorava a olhos vistos, mas ele teria que tomar pelo resto de sua vida.
Os pais compraram a quantidade que seu dinheiro permitiu na certeza de que, chegando ao Brasil, poderiam importar mais e mais.
O remédio era caro, mas, com a ajuda de parentes e de amigos, conseguiram o dinheiro para importar o medicamento em uma boa quantidade. Mas foi aí que os destinos das duas famílias se cruzaram: A importação do remédio ainda não estava autorizada no Brasil pelo fato de seu registro não ter sido homologado pelo órgão competente.
A solução, pensou Heitor, seria buscar uma autorização judicial.
O caso caiu nas mãos do juiz Edmundo Oliveira Bastos. Estudioso como sempre, o juiz aprofundou-se nos detalhes do problema da família, comoveu-se com os sintomas apresentados pelo menino e pelo fato de que ele era o único neto, tal como o seu querido Tiago. Só que havia um problema: o medicamento era feito de células-tronco de recém-nascidos e onde ele tinha sido testado o resultado fora um sucesso, mas o Dr. Edmundo era contra a utilização das células-tronco, por absoluta convicção religiosa e o seu veredicto foi taxativamente contra a importação da droga com a especial recomendação de proibição de seu uso em todo o território nacional até que os órgãos competentes o homologassem, ou seja, diante da negativa de um magistrado tão importante e respeitado, a resposta era, nunca.
Heitor e Helena tentaram todos os recursos possíveis para conseguir a liberação da importação, mas não conseguiram. A solução agora era outra: contrabando.
Aquilo jamais tinha passado pela cabeça do casal, mas, diante do quadro de saúde do único neto, não havia outra coisa a fazer.
Heitor viajou para o exterior e voltou com alguns frascos do medicamento. Não teve sorte e, ao passar pela alfândega na chegada ao Brasil, foi pego com o medicamento contrabandeado.
Heitor foi condenado a cinco anos de reclusão, pena máxima para o crime de contrabando e, pela falta do remédio, em dois anos o pequeno Artur faleceu vítima de uma parada cardíaca.
A vida continuava normal para o juiz Edmundo e sua família até que Dona Guiomar recebeu um telefonema da nora dizendo que estava notando umas coisas estranhas no rosto do pequeno Tiago, agora com onze anos.
Os avós foram até lá e o coração do juiz Edmundo quase parou quando ele percebeu que seu netinho apresentava um pequeno desnivelamento nos olhos, a boca torta e dificuldade para falar.
O CARPINTEIRO
Henrique era trabalhador, honesto, bom marido, bom pai, bom cidadão, enfim, um homem respeitado e admirado pela comunidade onde morava. Tinha todas as qualidades que se espera encontrar em uma pessoa de bem, temente a Deus e cumpridor de suas obrigações.
Havia, no entanto, um detalhe importante na personalidade daquele cidadão respeitável: ele não acreditava em Deus, não tinha religião, detestava falar sobre o assunto e apenas tolerava o fato de que sua esposa, Clarice, ia às missas aos domingos e ela, com muita dedicação, conseguira que os filhos João e Miguel a acompanhassem. Ele gostava de dizer que era um ateu convicto.
A mulher ia todos os domingos à pequena igrejinha construída em homenagem a N. S. de Lourdes. Era uma capelinha simples que, devido ao trabalho do padre Agostinho, estava sempre lotada e, por isso, a maior parte dos fiéis assistia ao sagrado sacramento de pé. Clarice não reclamava e, durante anos e anos cumpriu aquele ritual aos domingos.
O marido levava-a e aos filhos e esperava pacientemente que a cerimônia religiosa terminasse e levava a família de volta para casa. Não perguntava nada e Clarice evitava falar qualquer coisa sobre o sermão do padre ou qualquer outra parte da liturgia, mas, no íntimo, ela jamais desistira de convencer o marido quanto aos benefícios de se ter uma religião e que Deus, afinal, amava a todos.
Os anos passavam, a vida do casal prosseguia com tranquilidade e Henrique, que era carpinteiro, prosseguia com sua forte “convicção” de que o homem criara Deus e não, como propalava a religião de sua esposa, Deus criara o homem.
Não faltava trabalho ao carpinteiro que era considerado excelente profissional por todos os moradores e, mesmo sem uma renda familiar muito grande, ele conseguia prover a família do necessário para que vivessem com dignidade. Os filhos, João com catorze anos e Miguel com doze, iam bem na escola, a esposa fazia algum trabalho de costura para as vizinhas e, no fim do mês as contas e o orçamento doméstico se equilibravam.
Um dia aconteceu algo inesperado.
Henrique cortava umas peças de madeira com uma serra circular, ferramenta afiadíssima e, em um momento de distração, a sua mão direita estava onde não devia e a serra atingiu-a drasticamente. O ferimento quase lhe decepou a mão que ficou pendurada por alguns poucos nervos que não foram atingidos.
O homem, desesperado de dor, pediu ajuda à mulher e a alguns vizinhos que o levaram para o hospital mais próximo.
Após várias horas de cirurgia, o médico aproximou-se da família e informou a gravidade do ferimento e a complexidade da situação e que fizera todo o possível para salvar a mão direita de Henrique, no entanto, a possibilidade de ser necessária uma amputação a posteriori era muito grande. Deveriam esperar a reação do paciente, mas, de qualquer maneira, a recuperação seria muito lenta e exigiria muitos cuidados fisioterápicos.
O médico estava dizendo que Henrique teria que ficar bastante tempo sem trabalhar e que, talvez, tivesse até que mudar de profissão.
Tempos difíceis vieram, então. O carpinteiro cuja única fonte de renda era o seu próprio trabalho, impossibilitado de exercer a sua profissão, viu, de repente, toda a família dependente da pouca renda que a esposa conseguia com seus trabalhos de costura.
Mesmo assim, Henrique ia todos os dias para a sua oficina tentar fazer alguma coisa, mas não conseguia. A tristeza tomou conta do carpinteiro que, pela primeira vez na vida, não sabia o que fazer.
Um dia, pela manhã, o carpinteiro abriu a sua oficina e deparou-se com um homem à sua porta.
– Ouvi falar que o senhor está precisando de ajuda e, como sou carpinteiro também, vim me oferecer para ajudá-lo e o senhor me pagará com comida e de acordo com a minha produção, ou seja, só precisará me pagar quando receber pelas encomendas – disse o homem que deveria aparentar, talvez, um pouco mais de trinta anos usava barbas e roupas bem simples, típicas de um operário.
– Acontece que eu não tenho nenhuma encomenda há mais de um mês porque as pessoas sabem que eu estou incapacitado e, dessa forma, não vou poder pagar-lhe – respondeu Henrique.
– Bem, vou sair por aí e dizer para as pessoas da cidade que o senhor já tem um ajudante e que, agora, já está aceitando encomendas – respondeu o jovem.
– Bem, se você aceita trabalhar nessas condições e, pelo fato de eu estar precisando de fato de ajuda, aceito também.
Assim sendo, o jovem saiu aquela manhã pela cidade e logo retornou.
Admirado pelo fato de o rapaz ter demorado tão pouco Henrique perguntou:
– Já voltou? Então você não avisou ninguém!
– Avisei sim. Um senhor me disse que está precisando de uma mesa e algumas cadeiras e mais tarde virá aqui – respondeu o jovem.
De fato, um pouco mais tarde, chegou um dos vizinhos de Henrique e lhe encomendou a mesa com algumas cadeiras com o espaldar bem trabalhado. Havia alguns detalhes que nem mesmo Henrique já havia feito.
Preocupado com a dificuldade do trabalho, mas, diante da premente necessidade da família, o homem aceitou a tarefa.
O jovem carpinteiro, então, demonstrando extrema habilidade no ofício executou a tarefa com perfeição fazendo todos os detalhes exigidos pelo cliente.
Henrique olhou o resultado do trabalho do rapaz e ficou bastante impressionado. Aquele jovem era um excelente carpinteiro, sem dúvida.
Tão logo o trabalho ficou pronto logo chegou mais uma encomenda e depois mais outra e, assim, o jovem trabalhava o dia inteiro sem reclamar e com extrema perícia.
Henrique, então, agradecido, e depois de ter recebido o pagamento das encomendas decidiu pagar a parte do seu jovem e eficiente ajudante.
– Deixe para mais tarde, quando tivermos feito mais algumas encomendas. Não se preocupe porque eu não estou precisando no momento- respondeu o carpinteiro barbudo.
– Vejo que sofreu um grave acidente na mão direita. Como foi isso? – perguntou o ajudante.
Henrique narrou-lhe então o que acontecera naquele dia fatídico em que quase perdeu a mão e disse que estava bastante desanimado porque o ferimento estava cicatrizando e ele percebia que estava perdendo os movimentos da mão.
– Ora, deixe-me ver isso – pediu o rapaz.
Henrique não se incomodou e deixou que o rapaz segurasse sua mão e a colocasse entre as suas.
– Fique calmo e tenha fé. Você vai ficar curado – disse o rapaz.
Naquele instante Clarice entrou na oficina para oferecer um pouco de café ao marido e a seu ajudante e percebeu que o jovem tinha cicatrizes grandes nas palmas de ambas as mãos e que apareciam do outro lado.
Henrique viu que a esposa se impressionou com o fato e, como já tinha notado isso há algum tempo, não entendeu porque a mulher ficou tão admirada.
Já era a hora de encerrar o trabalho naquele dia e o jovem carpinteiro se despediu do casal.
No dia seguinte, surpreendentemente, o ferimento da mão direita de Henrique havia cicatrizado e ele a movimentava normalmente.
Desde aquele dia, o jovem carpinteiro não apareceu mais na oficina.
VELHAS CONVERSAS
– Ah! Finalmente você chegou! Por que demorou tanto?
– As condições do tempo me atrasaram. Na verdade, muita coisa estranha está acontecendo hoje em dia!
– Bem! O que você tem de novidade para me contar lá das bandas do sul?
– Estou feliz com o que tenho visto – disse o visitante. Afinal bons ventos de paz estão soprando por lá. Finalmente teve fim uma guerra sangrenta entre quatro nações da América do Sul. É verdade que muitos seres humanos morreram, mas o mais importante é que acabou. Espero que, a partir de agora, os homens entendam que é bom e necessário viverem em paz.
– Isso é inacreditável. Sabe que há muitos e muitos anos você e seus irmãos me visitam e, de vez em quando me contam essas notícias de guerra e de irmãos que matam irmãos por razões que, em muitos casos, a maioria desconhece – respondeu a velha senhora.
– Como lhe disse, finalmente acabou. Existe um monarca, em um grande país , que é um homem sábio, ponderado e que pensa muito em sua pátria e seu povo e tudo faz para o seu bem.
– Essas pessoas são importantes para a humanidade. Espero que ele tenha vida longa. – disse a senhora.
– Muita gente gosta dele, mas também é fato que ele tem muitos inimigos. A filha desse monarca tem discutido muito por causa do regime de escravidão que ainda existe lá e parece que o seu pai é simpático à ideia de terminar com essa coisa horrível mas há muitos interesses envolvidos por trás de tudo isso. Homens poderosos, que se aproveitam da mão de obra escrava, não aceitam de forma nenhuma que esse regime termine, mas a princesa é persistente e não desiste. Espero que ela consiga – disse o visitante.
– Eu também. Os seus irmãos, que vivem no norte me disseram que, por lá essas coisas não existem mais mas, infelizmente, houve, por esse motivo, uma guerra terrível de irmãos contra irmãos em que muita gente inocente morreu também. Espero que isso um dia termine.
A conversa demorou ainda algum tempo. Falaram sobre amenidades e das viagens que o seu visitante fazia pelo mundo afora.
A velha senhora ficou lembrando que essa conversa acontecera há alguns anos e que, depois disso, muita coisa aconteceu na região a que seu visitante, que vinha sempre do sul, se referira. Realmente a escravidão havia sido abolida mas isso teria despertado um ódio muito grande de alguns poderosos que acabaram depondo o monarca, expulsando-o do país que ele tanto amava e instalado uma nova forma de governo.
As lembranças iam e vinham e ela se recordou quando, há um pouco mais de tempo, um outro visitante, desta vez vindo do norte, lhe contara que um grande homem, que governava uma grande nação, também se empenhou muito para que esse regime escravocrata tivesse fim e conseguiu, no entanto, alguns anos depois, foi assassinado a bala quando estava em um teatro. Coisas tristes que se seguiam a acontecimentos grandiosos na história da humanidade. Ela se perguntava por que os homens viviam em guerra e matavam uns aos outros. Não conseguia entender aquilo porque entre as suas amigas, isso não acontecia nunca.
Lembrou-se também de um antigo visitante que estivera com ela há muitos anos e que tinha lhe falado de um jovem andarilho, de barbas de pontas e cabelos longos, sempre usando sandálias que só ensinava o bem. Curava as pessoas, confortava os infelizes, acudia os necessitados e trazia esperança àqueles que já não tinham nada a esperar da vida. Multidões o seguiam e escutavam, com atenção, suas palavras. Ainda assim, foi humilhado e massacrado pelas próprias pessoas que ajudara mas prometeu que voltaria. No começo ela achou estranho o fato de um homem ter sido tão mal tratado por seus semelhantes, morto por eles e, mesmo assim, até o último minuto de suas vidas perdoo-os e pediu perdão por eles. Finalmente, depois de algum tempo, ela entendeu.
Ela recebia muitas visitas e uma das que mais a tinha deixado triste foi uma vez em que o recém chegado lhe falou de um homem que formara um exército poderoso e que pretendia extinguir as raças que ele considerava inferiores. Mais uma vez, milhões de pessoas foram mortas por uma razão insana. Felizmente, no entanto, após tragédias sucessivas, o sujeito foi derrotado. O que a confortava era o fato de, finalmente, ao que parecia, os homens terem aprendido a lição e tomado precauções para que fatos como aqueles jamais se repetissem novamente.
Agora ela esperava mais uma visita que deveria chegar em poucos dias. Já fazia algum tempo que ele não aparecia e costumava contar belas estórias de seus passeios pelos mares e de como eram bonitos e tinham cores variáveis. Falava de pássaros que se movimentavam de acordo com estações do ano e que migravam por milhares de quilômetros. Depois, quando as condições se invertiam, voltavam ao seu ponto de origem. Repetiam isso ano após ano há muitos e muitos séculos.
– Ahhh! – a velha senhora deu um gripo de dor!
– O que está acontecendo?
– Que barulho é esse?
– Estão me machucando! Socorro!
A velha senhora urrava de dor e pedia desesperadamente que alguma coisa ou alguém a ajudasse.
– Por que estão fazendo isso? Eu estou aqui há milhares de anos! Vi tudo acontecer na terra!
Repentinamente ela começou a ficar fraca enquanto a motosserra penetrava implacavelmente em seu caule.
– Não me matem, por favor! – pediu uma última vez.
Não houve jeito. Em um último espasmo ela olhou para baixo e viu os homens se vangloriando do seu trabalho.
A velha samaumeira, então, emitiu um último suspiro e tombou estrondosamente na floresta.
A brisa costeira que chegou para a sua rotineira visita e demoradas conversas com a velha senhora só viu o tronco sangrando, cortado quase rente ao chão e a sua amiga no solo, já sem vida.
Ao redor dos restos de sua antiga amiga, os homens faziam festa pela sucesso de seu trabalho, afinal, tinha sido difícil conseguir autorização para derrubar aquela árvore velha que atrapalhava a passagem da nova auto estrada. Não importavam as suas memórias nem as estórias que ela, quem sabe, um dia, contaria às demais árvores, mais novas, da floresta.
A brisa do mar, então, enfureceu-se e se transformou em uma violenta tempestade tropical açoitando durante vários dias e várias noites toda a região.
Era a sua forma de prantear a velha amiga.
OS FRUTOS DE UMA TRAIÇÃO
Eloá era uma mulher quase comum. Quase porque, com a sua beleza estonteante, “parava o trânsito” por onde passava. Moça séria, recém-casada, bom emprego, nível cultural acima da média, curso superior em economia e mestrado em uma universidade bem conceituada, vivia um casamento feliz e tranquilo graças às ótimas condições financeiras suas e de Gérson, seu marido, homem de muitos negócios, falante e agradável e do amor que um sentia pelo outro. O casal não tinha do que reclamar na vida. Duas ou três vezes por ano viajavam para o exterior sempre se hospedando nos melhores hotéis, curtiam uma vida que poderia dar inveja a muita gente.
Causou inveja, sim.
Carolina ou Carol, como ela gostava de ser chamada era tão bonita quanto Eloá. Igualmente desfrutava de um ótimo nível social e cultural, mas havia algo que a amiga possuía e ela não, ou melhor, alguém. Carol era apaixonada por Gérson. Nutria esse sentimento em sigilo, mas estava cada vez mais difícil disfarçar, principalmente, pelo fato de que, sendo ela uma das amigas mais próximas de Eloá, era comum, nos fins de semana, visitar os amigos e, até mesmo, fazer algum programa cultural juntos. Iam ao teatro juntos, uma ou outra recepção, etc. Eloá não desconfiava de nada, mas o coração de Carol ardia de uma forma quase indisfarçável.
Carol decidiu que iria trocar de carro e, claro, procurou uma das lojas de revenda de automóveis de Gérson, “para dar preferência ao marido da amiga” – dizia ela para si mesma.
Ela sabia que não era nada disso. Na verdade o que queria era uma oportunidade de ficar a sós com Gérson e aí, – quem sabe? – talvez acontecesse alguma coisa.
Marcou o dia em que iria à loja, tudo de comum acordo com Eloá.
De fato, ela teve a sua chance. Gérson a esperava em seu luxuoso escritório com vidros fumê e belas cortinas escarlate que lhes garantiam total privacidade.
Recebeu a amiga e foi ao salão de exposições para que ela escolhesse o veículo que mais lhe agradaria.
Carol escolheu um carro último tipo, um conversível da moda que custava uma pequena fortuna para alguns.
– Você tem muito bom gosto – disse Gérson.
– Obrigada, mas não teria escolhido sem a sua ajuda.
Sozinhos no escritório privativo, não foi difícil a inocente conversa evoluir para algo muito mais apimentado e, quando deram por si, tinham consumado um amor que há muito se escondia em corações apaixonados. Gérson, também, era louco por Carol.
– Aceite este carro como um presente – ofereceu Gérson.
Carol não se fez de rogada e aceitou o mimo com muito prazer.
A partir daí foi uma questão de tempo e, logo, o casal repetia os encontros cada vez com mais frequência.
Um dia aconteceu o inevitável.
Eloá sentiu-se indisposta no trabalho e resolveu ir para casa para descansar o resto do dia. Ao chegar, estranhou ver o carrão da amiga estacionado nos jardins da bela mansão, na parte interna, sem a menor cerimônia.
“O que estaria Carol fazendo ali, em sua casa, àquela hora do dia?” – pensou a bela morena de verdes olhos feiticeiros.
A mansão tinha alguns empregados, mas, inexplicavelmente, naquele dia, nenhum deles veio abrir a porta para a patroa. Mais uma coisa estranha para Eloá.
Foi entrando, dirigindo-se ao quarto do casal e aconteceu. Pegou os dois no maior flagra.
Eloá não disse uma única palavra. Não teve forças para isso, enquanto Gérson e Carol se esforçavam em querer desculpar o indesculpável. Eloá apenas se retirou. Saiu de casa, pegou o carro e dirigiu sem destino algum.
Depois de algum tempo encontrou um barzinho, onde ela jamais tinha ido, e, inexplicavelmente, pediu uma dose de whisky. Tomou uma, tomou duas… até que ficou bêbada.
Um rapaz percebeu que aquela moça deveria estar passando por algum problema além do fato que ela não tinha mais nenhuma condição de dirigir. Foi até ela:
– Moça, posso ajuda-la?
Eloá olhou para o jovem e, sem dizer nada, deu-lhe um ardente beijo na boca e depois lhe disse:
– Leve-me para onde você quiser.
Na manhã do dia seguinte, Eloá acordou em um lugar estranho. Era um apartamento de classe média. Estava deitada em uma cama que não era a sua ao lado de um homem que não era o seu marido.
Fez um esforço de memória e se lembrou da traição cometida por Gérson e sua melhor amiga, Carol.
Apenas virou-se para o companheiro e repetiu o que fizera a noite toda: sexo.
Algum tempo depois foi embora, mas decidiu que não voltaria para sua casa. Teve um momento de lucidez e ligou para um advogado a quem explicou o que tinha acontecido e solicitou que cuidasse dos papéis do divórcio.
Mudou-se para um apartamento e, então, a sua vida deu uma reviravolta de cento e oitenta graus.
Passou a sair todas as noites e, sempre encontrava um parceiro diferente. Hora iam para o seu apartamento hora iam para um lugar qualquer. Só uma coisa importava: tinha que saciar a sua necessidade de sexo.
Algo acontecera com a mente da jovem transformando completamente a sua personalidade.
Repetiu esse tipo de vida por três anos seguidos. Não tinha a mínima ideia de quantos parceiros teve nesse tempo. O trauma por que passou fez eclodir algo que desencadeou um processo de ninfomania e ela não se dava conta disso.
Um domingo de manhã, acordou mais uma vez com um parceiro diferente em sua casa. Pediu ao homem que fosse embora e, após um banho, sentiu um desejo forte de ir a uma igreja. Precisava conversar com alguém, de preferência um padre. Não que quisesse se confessar, precisava apenas desabafar.
Chegou à igreja e esperou que a missa terminasse. Dirigiu-se à sacristia e disse que gostaria de falar com o padre.
Padre Onofre era um homem de perto de seus sessenta anos. Cabelos grisalhos, olhar e semblante de paz.
– A moça disse que quer falar em particular – disse Zeca, uma espécie de auxiliar da paróquia.
– Sente-se, minha filha – disse o padre.
A jovem sentou-se e, durante mais de uma hora, apenas chorou. Era a primeira vez em muitos anos que chorava.
Padre Onofre, pacientemente, esperou que ela desabafasse seu pranto e, quando viu que a jovem já respirava quase normalmente, perguntou-lhe:
– Quer me contar agora o que houve?
Eloá relatou tudo entre prantos e momentos de desespero. Contou como fora traída por sua melhor amiga que destruiu o seu lar e como a sua vida tinha se transformado em um inferno sem controle.
Com uma forte formação em psicologia, o padre ouviu tudo pacientemente e depois lhe disse:
– Você está doente e precisa se tratar. Vou lhe indicar um psiquiatra, amigo meu, um homem muito bom e sugiro que você siga o que ele lhe indicar.
Hoje Eloá vive à base de remédios tarja preta. Sai de casa apenas para trabalhar, ir à igreja ou, simplesmente, para conversar com padre Onofre.
Não está curada, mas vive com dignidade.
Gérson, que viu seus negócios afundarem lentamente, não suportou a proximidade da falência e cometeu suicídio há dois anos. Carol ficou com boa parte de sua fortuna e vive hoje em outro país e curte os benefícios que lhe trouxeram a sua traição.
O LENHADOR
Rio da Felicidade é uma cidadezinha pacata do sudeste do Brasil. Hoje, se muito, deve contar com doze mil habitantes. Fundada em 1846 por um expedicionário ainda na época do império, a cidade permaneceu isolada até hoje devido à dificuldade de acesso. Em uma região de montanhas, onde a temperatura jamais fica acima de 18º C mesmo no verão, o lugarejo é cercado por um verdadeiro jardim natural. Acácias se misturam a camélias, rosas de diversas cores e de singelas margaridas. Na primavera, a cidade parece um manto de beleza. Além disso, a população acostumada a viver entre flores, adotou o saldável costume de cultivar jardins. Não existe uma única casa na cidade que não tenha um belo jardim.
Arvores nativas frondosas como cedro e pau-brasil misturam-se a outras como mangueira e palmeira imperial que, importadas de outras regiões, adaptaram-se bem ao clima do lugar.
Cortando a cidade de norte a sul, um rio caudaloso, cristalino, que alterna momentos de placidez com a inquietação de suas águas à medida que se aproxima da maravilhosa Cachoeira dos Passarinhos, é chamado de rio da Felicidade, e empresta o seu nome à bela cidadezinha.
É um verdadeiro paraíso e, parece, vai continuar assim por muito tempo, porque para chegar lá é preciso subir 1435 metros em uma região de estrada de terra, extremamente tortuosa, mas que encanta e maravilha quem se arrisca ir até lá. Existe uma única pousada que oferece seis quartos para hospedar os poucos turistas que, de vez em quando, aparecem. Que continue assim – pensam os seus moradores.
Por volta de 1858 vivia ali um jovem de nome Euclides. Nascido e criado em Rio da Felicidade, era analfabeto, como quase todos os habitantes do lugar e vivia da caça, da pesca e da venda de lenha às famílias do lugar. Euclides era conhecido como “O lenhador”.
Rapaz alto e forte, tez queimada de sol, trabalhava do amanhecer ao anoitecer Tinha dois cavalos que ele chamava de Valente e Guerreiro, que o ajudavam na pesada tarefa de transportar a madeira que ele cortava, a machado, na floresta, para os seus clientes. Deixava na porta. A luz elétrica só chegou lá por volta de 1983 e, o calor produzido pelas toscas lareiras das casas era a única forma de as pessoas se protegerem do frio da região. Desta forma Euclides ia tocando a vida.
Tinha resolvido construir uma casinha em uma das margens do Rio da Felicidade, próximo da cachoeira, justo onde suas águas já estavam bastante revoltas. Ela gostava do som da cascata.
Do outro lado do rio morava Lourdes. Moça bonita, de olhos da cor de amêndoa, morena, lábios carnudos e vermelhos. À tardezinha, ela costumava sentar-se no alpendre de sua casa de madeira e ficava penteando seus longos cabelos negros. Era de uma beleza natural, quase selvagem.
Euclides, quando estava trabalhando na construção de sua casa, dividia sua atenção entre martelos, serrotes e a bela visão da morena do outro lado do rio. A família de Lourdes era cliente do rapaz, de quem comprava lenha. O pai era caçador e a mãe, dona de casa, como quase todas as mulheres daquela época.
Quando ia entregar lenha na casa de Lourdes, ele procurava um jeito de conversar com a moça que, muito tímida, só raramente lhe dirigia o olhar e o máximo que conseguia dizer eram monossílabos de concordância.
Euclides perguntava tudo o que a polidez de um jovem do campo permitia. Fora criado trabalhando duro desde criança, mas seu pai, que já tinha ido para o outro lado, lhe ensinara a tratar com as mulheres.
O fato era que, devido à dificuldade de atravessar o rio por falta de uma ponte, o contato de Euclides com a jovem Lourdes era muito raro e ele jamais tivera uma oportunidade de sequer lhe dizer que ela era a mulher de sua vida.
Em certo momento, Euclides começou a sentir falta da jovem donzela que penteava os cabelos ao cair da tarde.
Levava a lenha para a família e não via mais a moça. Até que um dia, conversando pela cidade, em um dos raros momentos de folga que tinha, Euclides ouviu a notícia que quase fez seu coração parar: o pai da moça tinha concordado com o pedido de casamento de um rico fazendeiro que morava a mais de cem léguas de distância.
A partir daquele dia, o jovem Euclides nunca mais foi visto na pequena Rio da Felicidade. Dizem que ele montou em Valente, levou Guerreiro como reserva, e foi se alistar nas forças brasileiras que combatiam na guerra do Paraguai.
1978. O governo decidiu, finalmente, construir uma ponte que unia as duas margens do rio da Felicidade.
O local escolhido foi próximo à Cachoeira do Passarinho porque ali era o local mais estreito do rio e onde seria mais fácil construir os acessos.
A ponte, uma obra simples, em forma de arco, fora projetada para passar animais, carros de boi, pedestres e veículos motorizados em mão única, afinal, o movimento de carros ali, felizmente, até hoje, é muito pequeno.
Em menos de um ano a ponte estava pronta e fora inaugurada pelos políticos que nunca mais voltaram lá. O povo não sentia a menor falta deles.
A vida melhorou para todo mundo. As distâncias diminuíram e as pessoas que moravam em uma margem ou outra passaram a se falar com mais facilidade.
Ali perto, havia uma casa de madeira, abandonada há muitos anos que se deteriorou sem sequer ter sido concluída. Na verdade restava pouca coisa da construção, mas ainda se podia notar que tinha um alpendre e três compartimentos.
O engenheiro responsável pela construção da ponte se encantou com o lugar e achou que seria ótimo ter uma casa ali para quando quisesse fugir das atribulações da cidade grande. Na verdade ele gostava do cheiro do mato e se encantara com a Cachoeira dos Passarinhos e pelo som produzido pelas águas que se precipitavam de uma altura de mais de trinta metros.
Informou-se quanto ao proprietário da casa abandonada e, na prefeitura, ficou sabendo que a construção estava abandonada há mais de cem anos e que, na verdade, o terreno pertencia à prefeitura da cidade.
O jovem engenheiro, que se chamava Hernani, adquiriu o lugar e, rapidamente construiu ali uma casa. O local tinha uma bela varanda onde o jovem engenheiro gostava de ficar sentado, à tardezinha, assistindo o passar das inquietas águas do rio da Felicidade. Sua casa ficava a apenas vinte metros da ponte.
Do outro lado do rio, ele reparou que uma bela jovem também gostava de ficar no alpendre de sua casa penteando os seus lindos cabelos longos e observando o passar das águas do rio.
Aquilo, mesmo de longe, criou uma certa simpatia de um para com o outro. Um dia, Hernani resolveu atravessar a ponte e se apresentar diante da jovem para conversar.
Aí aconteceu algo que Hernani jamais imaginara. Os seus olhos encontraram os olhos da bela jovem e uma longa estória de mais de cem anos passou em sua frente como um filme. Ele a reconheceu e, sem titubear, disse-lhe: vim apenas dizer-lhe que ainda a amo.
RAIO NEGRO
Uma planície sem fim.
O verde da grama abundante, um riacho que corre preguiçosamente tentando se desviar das pedras, as sombras de árvores frondosas e a liberdade. Uma liberdade também sem fim.
Essa era a vida, o dia a dia daquele alazão negro. Corcel vistoso de pelo brilhante ao natural refletindo a luz da lua cheia ou esplendor dos raios do sol. Era lindo a qualquer hora do dia ou da noite.
Comandava uma tropa de trinta outros cavalos. A sua liderança acontecia não só pela força e opulência que ostentava ante os seus seguidores mas, principalmente, pela sua inteligência e perspicácia. Sempre identificava o inimigo a tempo de preparar uma boa defesa ou, simplesmente, fugir. A estratégia adotada dependia do inimigo e da situação.
Um dia ele chegou.
Mansamente, como quem não quer nada. Primeiro ficou observando de longe e, rapidamente o seu jovem coração se apaixonou. Cedeu diante dos encantos daquele belo exemplar de equino, livre como o vento, veloz como um raio e forte como o maior de todos os touros. Sua crista, de um castanho claro, contrastava com o seu pelo negro reluzente e combinava, discreta e sabiamente com as manchas brancas que tinha nas quatro patas e em seu dorso. Era uma visão deslumbrante para o rapaz.
O jovem ficou ali, escondido entre algumas pedras, um dia, dois, três, vários dias.
A princípio só paquerando o animal depois, tomou a ousada decisão: tentaria ser seu amigo.
O que o rapaz não sabia era que o alazão já tinha percebido a sua presença desde o primeiro momento. Suas narinas apuradas detectaram o seu cheiro no qual o animal não percebeu nenhum perigo.
Audaciosamente, no oitavo dia de espreita, Pedrinho – assim se chamava o rapaz – se aproximou do animal.
Um relinchar de aviso se fez ouvir e Pedrinho resolveu voltar. Como que para completar o que queria dizer, o belo cavalo negro empinou as patas dianteiras e, olhando na direção de Pedrinho bufou várias vezes. O aviso estava dado: que ficasse a distância.
Acontece que o jovem, além de audacioso, era, também, teimoso e, mais uma vez tentou se aproximar do animal e mais uma vez foi rechaçado.
Pedrinho não se escondia mais. Simplesmente ficava ali, sentado em uma pedra “conversando” com “Raio Negro” – resolveu dar esse nome para o bicho sem nem mesmo pedir licença. Vejam só!
O rapaz contava sua vida. Dizia que tinha que ir à escola porque sua mãe dizia que seria bom pra ele. Que fazia os trabalhos de casa, como por exemplo, apanhar água do poço, dar de comer aos porcos, ordenhar as vacas e, no verão, tosquiar as três ovelhas que a família possuía. Ah! Havia também Tinho e Kanta, um cavalo e uma égua que ajudavam seu pai no trabalho de arar a terra e outros mais pesados.
Gostava deles, é claro, mas seu coração tinha batido mais forte quando viu o belo alazão negro.
Conversava durante várias horas com o seu Raio Negro. Às vezes até inventava estórias, contava umas mentirinhas engraçadas para passar o tempo e divertir aquele semideus das planícies.
Um dia, Pedrinho falou tanto, mas tanto, que acabou adormecendo à sombra de uma pedra.
Acordou algum tempo depois – ele nem sabe dizer por quanto tempo dormiu – com o relinchar de Raio Negro, quase em cima de si e com o vigoroso bater dos cascos do animal em cima de alguma coisa.
Pedrinho, assustado, sem entender o que estava acontecendo, olhou para o local onde o animal batia repetidamente com os seus casos e viu uma mortífera cobra cascavel com a cabeça esmagada.
O alazão das planícies tinha salvo a vida de seu misterioso amigo.
Pedrinho aproximou-se do animal que, docemente, se deixou acariciar no pescoço e no dorso.
Estava selada, ali, uma grande amizade.
Os anos se passaram e Pedrinho nunca tentou aprisionar o animal. Continuou a visitá-lo todos os dias até que, finalmente, Raio Negro permitiu que ele o montasse.
Dessa forma, Pedrinho passou a fazer belíssimos passeios pelas planícies montado, em pelo, em um corcel negro, até o fim dos seus dias.
Até hoje é comum na região pessoas dizerem que viram um jovem montado em um corcel negro, com manchas brancas nas patas e no dorso, sem selas ou arreios, galopando alegremente pelos verdejantes campos do lugar.
UM PASSEIO NO PARQUE
Em um belo início de tarde de primavera, Denise passeava com seu cão da raça Mastim Tibetano, com pedigree desde a oitava geração. Os agradáveis doze graus daquela calma manhã combinavam bem com o suave trânsito de carros que voam a baixa altitude ou, simplesmente, movimentam-se pelas limpíssimas ruas da cidade, algumas vezes sem ninguém a bordo ou com apenas um passageiro. Orientados por um simples, porém, eficiente sistema de sinalização ou pela internet, os veículos deixaram de precisar de motorista há várias décadas e, agora, os passageiros tinham total conforto e segurança para se movimentarem pelas ruas e avenidas das pequenas cidades do mundo.
Nenhuma cidade tinha mais do que setenta mil habitantes.
Denise tinha acabado de aterrissar o seu carro no parque da cidade onde plantas ocidentais, como a Sakura japonesa, misturam-se com outras, americanas como a Maple canadense ou o Cedro-do-Líbano ou, ainda, uma singela bananeira grega ou indiana.
Era o ano de 2135 e a população mundial reduzira-se a pouco mais de oitocentos milhões de habitantes.
A vida tinha ficado mais fácil para todos. A última guerra acontecera no longínquo ano de 2042 quando as duas últimas superpotências quase se dizimaram levando consequências trágicas à população mundial.
Depois disso, todos os países do mundo, sem exceção, reuniram-se na pequena cidade de West Coast, na Zona Zelândia, para assinarem um acordo de paz e, pela primeira vez na história da humanidade, uma reunião daquele tipo conseguiu superar todas as expectativas.
Não apenas foi assinado um tratado de paz como, também, por proposta de um dos menores países daquela época, foi criado um órgão com jurisdição internacional, com poderes administrativos sob todas as nações e adotada uma lei mundial, ou seja, uma lei à qual todos os países do mundo estariam submetidos, que foi, a Lei do Filho Único. A partir daquela data, nenhum casal poderia ter mais de um filho, sob nenhuma circunstância.
Todos os países, em nome da paz mundial e para evitar o crescimento descontrolado da população do planeta, que naquele ano, superando todas as expectativas dos cientistas já tinha ultrapassado a casa dos dez bilhões de habitantes, decidiu tomar essa decisão como forma de evitar o colapso de água e alimentos na Terra o que, certamente, ocasionaria mais guerras, fomes, doenças e destruição.
Foi a decisão mais acertada da História da Humanidade.
Os países passaram a incentivar o casamento com pessoas do mesmo sexo como forma de evitar a procriação, proibindo, terminantemente, qualquer forma de inseminação artificial para evitar acidentes como o nascimento de gêmeos, na verdade, a única possibilidade que permitia que um casal tivesse mais de um filho, desde que o processo de gestação tivesse sido absolutamente natural. Se um casal não podia ter filhos, então não teria filhos. Essa era a face dura do projeto, mas os resultados, hoje, podiam ser vistos facilmente em qualquer parte do planeta.
As riquezas foram distribuídas de forma equânime, há mais de cinquenta anos não acontecia a extinção de qualquer animal ou planta, todas as doenças estavam sob total controle da medicina e a expectativa média de vida dos habitantes era de cento e vinte e três anos.
Não havia desemprego, déficit de moradias, ditadores em pequenos países, ódios por causas racistas ou religiosas, ou seja, a humanidade vivia uma época próspera e feliz.
Denise já tinha terminado o seu dia de trabalho. Sua jornada ia das nove horas da manhã ao meio dia. A sua filha, Scarlet, ficava na escola das nove horas até as 18, horas e, depois, voltaria para casa em seu carro guiado pelo sistema de controle da cidade. O marido, Henry, se reuniria a ela em alguns minutos e continuariam seu singelo passeio observando os jardins suntuosos daquele belo parque.
Pararam para almoçar em um pequeno restaurante que servia pescados e saladas naturais e tomaram um bom vinho, produzido ali mesmo, na sua cidade. Afinal, todas as formas de tecnologia eram compartilhadas, inclusive aquelas relacionadas à agricultura.
O analisador de saúde de Henry vibrou. O homem olhou e leu a mensagem que indicava uma pequena alteração no seu nível de audição – sintoma comum em uma pessoa de noventa e cinco anos – e informava-lhe os medicamentos que deveria tomar e os procedimentos que deveria adotar para evitar a progressão dos sintomas. Informava-o, também, que o sistema iria intensificar o monitoramento de sua audição e, em caso de qualquer indício de agravamento ou em caso de não haver reversão em quinze dias uma consulta já estava marcada para as quinze horas ou, em caso de impossibilidade de seu comparecimento nesse horário, que ele informasse quando estaria disponível.
Henry abraçou a sua Denise e ambos continuaram seu passeio pelo parque, quando chegassem em casa, os medicamentos já estariam lá e, então, começaria o seu tratamento calmamente.
NÁDIA
Yuri Tchecov tinha vinte e oito anos e nunca tinha trabalhado na vida. Dirigia um carro esporte do ano, presente de sua mãe, frequentava as altas rodas da sociedade, namorava as moças mais bonitas e bem vestidas da cidade e jamais se preocupara com qualquer coisa. Tinha tudo a seu tempo e hora. Ele tinha nascido, como se diz, em berço de ouro.
Educação refinada, bem apessoado, sorriso fácil, o rapaz não tomava conhecimento das dificuldades de ninguém. O fato de jamais ter passado por quaisquer problemas na vida fez com que ele não se importasse com as pessoas e seus sentimentos. Era extremamente egoísta e, até mesmo, desonesto. Se fosse para levar vantagem em alguma coisa Yuri era capaz de tudo.
Filho único, pais multimilionários, vida boa e fácil, enfim, era um “bon vivant”. A sua educação passara pelo ensinamento de línguas estrangeiras, um curso de direito e muita experiência no exterior. O rapaz era bastante conhecido na cidade e, sabia-se, deveria herdar um verdadeiro império industrial e comercial.
Ivan Tchecov, o pai, era um rico empresário. Fabricava e vendia compressores industriais e tinha filiais em vários países da Europa. Um dia, o filho que fora criado cercado de riquezas e proteção, deveria gerir todo o conglomerado.
Ivan não sabia o que era perder. Desde criança fora acostumado a focar seu pensamento na vitória e, com um faro impressionante para os negócios, tinha conseguido acumular uma fortuna invejável. Ateu por convicção, bem como sua esposa Lana, mãe de Yuri, criaram o filho com o mesmo pensamento. Para aquela família o que interessava eram os bens materiais. Nada de sentimentalismos, caridades e, muito menos e principalmente, religião. “Isso é coisa para os fracos”, costumava dizer o empresário.
Sendo assim, não se poderia esperar do jovem Yuri outra coisa a não ser que fosse um “playboy” desinteressado pelas pessoas e por quaisquer valores morais ou espirituais.
Em uma das inúmeras recepções que a família Tchecov costumava oferecer à altíssima sociedade da cidade, Yuri conheceu Nádia, uma jovem com as mesmas origens da família Tchecov. Morena, cabelos longos, olhos negros penetrantes e de uma inteligência rara. A moça encantava a todos.
A amizade entre os dois jovens agradou em cheio a Ivan e Lana e, em pouco tempo os dois namoraram e ficaram noivos. O casamento estava marcado para muito em breve.
Os pais de Nádia, também muito ricos, estavam igualmente satisfeitos com aquela união que, de fato, em menos de um ano consumou-se em casamento. O jovem playboy tinha sido fisgado.
Havia, no entanto, uma diferença muito grande entre os pensamentos das duas famílias: enquanto Yuri e seus pais só pensavam nos negócios e desprezavam religiões, quaisquer que fossem, Nádia e sua família, eram cristãos e afetos a todos os sentimentos humanitários. Costumavam frequentar a igreja Católica e, não raro, participavam de campanhas para ajudar pessoas atingidas por tragédias além de contribuírem, regularmente, para as obras de caridade de sua paróquia.
Acontece que Yuri, apaixonado, escondeu essa realidade dos pais que só ficaram sabendo depois do casamento.
– Mas que absurdo! – disse Ivan. Por que você não me falou isso antes?
– Essa estória de que Deus criou o homem é pura invenção para atrair os bobos a deixarem seus bens para essas igrejas e seus pastores desocupados – disse Lana.
– Deus não criou o homem – continuou Ivan – e sim, o homem que criou Deus para se esconder de suas fraquezas.
Yuri comungava plenamente daquele pensamento e, aos poucos, a empolgação ou a paixão de primeiro momento que sentiu ao encontrar a bela Nádia foi se dissipando e, em breve, o casamento dos dois não passava de uma representação.
Nádia, no entanto, fora criada sob fortes alicerces religiosos que defendiam a família e ela decidiu que não iria desistir assim, tão facilmente, de sua união, pelo contrário, lutaria por ela.
A moça apegou-se à sua santa padroeira, N. S. das Graças, pedindo-lhe que a ajudasse a reconquistar o coração de seu marido e que, de alguma maneira, mostrasse à família Tchecov que estavam errados em seu pensamento egoísta e distante dos ensinamentos cristãos.
Ivan, agora com setenta e dois anos, sempre gozara de boa saúde, no entanto, vinha sentindo dores abdominais frequentes, mas não queria ir a médicos, na verdade, pouquíssimas vezes na vida tinha conversado com um desses profissionais. Desta vez, no entanto, as dores foram ficando cada vez mais amiúde e, com muita insistência da esposa acabou visitando um Clínico Geral que, após alguns exames preliminares, encaminhou o paciente a um gastroenterologista que, rapidamente, diagnosticou um câncer no pâncreas, um dos mais agressivos e mortais que podem afetar o ser humano.
Dr. André foi claro e, diante da esposa informou o paciente que ele teria poucos meses de vida, no máximo, quatro. O quadro era irreversível.
A notícia atingiu a família como uma bomba. Evidentemente, procuraram outros profissionais, mas o diagnóstico se confirmava sempre. O magnata Ivan Tchecov estava condenado à morte.
Aos poucos, enquanto o patriarca definhava a olhos vistos, a família foi se resignando com o seu inevitável fim. Todos, menos uma pessoa: Nádia.
A moça, esquecendo todas as injustiças cometidas pelo sogro e as humilhações a que fora submetida, apegou-se com sua protetora pedindo-lhe que curasse o homem daquela enfermidade que, até então, mostrara-se incurável para os médicos, mas que ela acreditava ser possível para os santos poderes de N. S. das Graças.
A moça rezava, ia à igreja e pedia com muita fé à Santa que a atendesse.
Yuri, ao saber que a esposa tinha assumido essa atitude, em vez de ficar grato, revoltou-se ainda mais lhe dizendo que aquilo era algo estúpido e que o que ela estava fazendo era pura perda de tempo e que ela deveria, pelo menos, respeitar os últimos dias de vida de seu pai.
A jovem, no entanto, não desistiu e continuou com suas orações. O fato é que o assunto chegou ao conhecimento do moribundo e, para surpresa geral, ante a proximidade da morte, mandou chamar a nora a quem pediu que intensificasse as orações.
Lana, ante o medo de perder o esposo, passou a acompanhar a jovem nas idas à igreja e, agora, na terceira idade, estava aprendendo a rezar.
Apenas uma pessoa não aceitava aquela situação: Yuri. Sua arrogância não permitia que ele aceitasse uma ajuda vinda de “algo” que ele não podia ver. Se os melhores médicos não puderam fazer nada, então, o caso estava simplesmente perdido.
No entanto, Ivan, inexplicavelmente, começou a melhorar. Tanto que os médicos, antes incrédulos quanto a uma eventual recuperação, começaram a visitá-lo com mais frequência, não pela necessidade clínica, mas, por absoluta, surpresa. O paciente, antes condenado à morte, estava se recuperando.
Yuri continuava a achar que aquilo era consequência dos medicamentos e porque seu pai sempre fora um homem forte.
Dentro de dois meses o patriarca saiu do hospital e, totalmente mudado, dirigiu-se à igreja com a esposa e a nora para agradecer a graça recebida.
Era domingo, e a família deveria almoçar junto. As orações de Nádia tinham conseguido não só a cura do sogro, mas provocado uma mudança no comportamento daquela família que, agora, à exceção do filho, todos estavam convertidos ao cristianismo. A próxima missão seria fazer com que ele também mudasse de ideia.
Quando chegaram a casa, não encontraram o rapaz na sala, como era de costume, acharam-no em seu antigo quarto contorcendo-se com insuportáveis dores abdominais.
Levado às pressas a um hospital, exames radiológicos indicaram algo insuspeito até o momento: o rapaz estava com um tumor no pâncreas, igual ao que acometera o seu pai há poucos meses. O médico que o atendeu não lhe deu nenhuma esperança de cura.
FRANK
– Pai, quando é que eu vou ganhar o meu cachorrinho de presente? – perguntava Paulinho quase todos os dias.
Ele tinha apenas cinco anos e aquele já era um sonho antigo.
O menino queria muito ter um cãozinho e, por isso, não dava sossego a Ramiro, seu pai.
– Está bem – respondeu, um dia, resignado, o pai que não gostava muito de cães, talvez por algum trauma de infância ou, sei lá o quê. O fato era que ele não gostava, mas, ante tanta insistência do filho decidiu comprar para o garoto um filhote de pastor alemão.
– Você vai ganhar um cãozinho no dia do seu aniversário, está bem?
Os olhinhos do menino brilharam de alegria. O dia em que ele completaria seis anos estava perto, faltavam apenas algumas semanas e ele mal podia esperar.
O dia, finalmente chegou. Para o pequeno Paulinho pareceu durar uma eternidade, mas, chegou.
O menino acordou cedo e decidiu não cobrar o pai, isso com palavras, porque os seus olhinhos expressavam mais do que qualquer discurso.
Hora do almoço e, finalmente, Ramiro chegou. Trazia uma caixinha com alguns orifícios e um lindo laço vermelho fechando-a. Não era difícil descobrir o que havia lá dentro.
Ramiro chamou o filho e lhe disse:
– Meus parabéns, meu filho. Aqui está o seu presente. Pode abri-lo.
O garoto não cabia em si de felicidade. Lá estava ele. Um belíssimo filhote de pastor alemão, capa preta. Muito fofo e, quando viu o menino, latiu mansamente e lambeu carinhosamente as mãozinhas que o tiraram da caixa. Estava selada uma grande amizade.
– Esteja certo, Paulinho, que este cãozinho será o seu maior amigo. Seja amigo dele também e vocês serão muito felizes.
– Sim, pai! – respondeu o menino não cabendo em si de felicidade.
Rose, a mãe, aproximou-se do menino e perguntou-lhe:
– Qual é o nome dele, meu filho?
– Frank – respondeu o menino.
O menino pegou o cãozinho no colo e correu para o quintal dizendo:
– Vamos, Frank. Vou lhe ensinar todos os truques.
Os anos passaram e, agora, Paulinho tinha doze anos e Frank era um belo cão de guarda de seis anos.
Pela manhã, os dois iam juntos para a escola. Todos os amiguinhos de Paulinho adoravam o cão e ele correspondia com amigáveis lambidas em todas as crianças.
O cão ficava na porta até Paulinho entrar na escola, depois, voltava sozinho para casa a três quarteirões dali e, ao meio dia, pontualmente, estava de volta esperando seu fiel amigo sair e voltar com ele para casa. Pontual e fiel.
Paulinho andava de bicicleta pelas ruas do bairro e Frank corria ao seu lado. O menino ia jogar futebol e o cachorro “era o bandeirinha”, não saía do lado do campinho, enfim, o cão participava de todos os momentos da vida do seu amado dono.
Em casa as pessoas tinham aprendido a amá-lo também, até mesmo Ramiro, que um dia resolveu contar porque não gostava de cães – tinha sido mordido por um quando criança – rendeu-se aos encantos do belo pastor alemão.
Excelente cão de guarda, Frank passava as noites na sua casinha, próxima da garagem da casa da família e, ao menor sinal de intrusos, o seu rosnar de poucos amigos se fazia ouvir. Eram dias tranquilos e felizes.
Os dias começavam cedo na casa de Paulinho e, às sete horas, o menino ia pra escola e os pais para o trabalho. Era uma segunda-feira como outra qualquer.
O menino caminhava brincando distraidamente com seu cachorro quando aconteceu. Ouviu-se o cantar dos pneus e o estridente som da buzina.
A seguir dois baques secos arremessaram o menino e o seu cachorro bem longe.
O motorista não teve culpa porque os dois atravessaram a rua repentinamente e ele não teve tempo de frear. Muita gente acorreu para socorrer o menino que jazia desacordado em uma grande poça de sangue.
A ambulância chegou, colocaram o menino dentro dela que partiu velozmente com seu grito estridente rasgando aquela fria manhã de inverno.
Frank estava estendido no chão. Ninguém o socorreu. Sequer foram ver se ele estava vivo, mas ele estava vivo e percebeu quando colocaram o menino na ambulância e em que direção ela foi.
Sob o olhar espantado dos curiosos, o cachorro se levantou, bastante machucado, mancando de uma perna e, com muita dificuldade, seguiu na direção que tinha tomado a ambulância.
Foi uma caminhada difícil para o pobre Frank. Sangrando, com uma pata fraturada que deveria estar doendo muito, o cão, após, três horas de penosa caminhada chegou, finalmente, ao hospital. Resoluto, tentou entrar, mas, evidentemente, foi barrado.
O animal, então, resolveu ficar em frente ao hospital de plantão.
Viu quando os pais de Paulinho chegaram e ele latiu, mas ninguém ouviu. Estava decidido, não sairia dali até “ter notícias” do menino.
Os dias passavam e os ferimentos de Frank pioravam. A pata estava muito inchada e ele, sem alimentação, estava ficando cada dia mais fraco. Não comia nada e, apenas quando chovia, ele conseguia tomar um pouco da agua que escorria pelas canaletas de esgoto da rua.
Finalmente, após vários dias, Frank viu uma figura conhecida sair de cadeira de rodas do hospital.
Latiu, fraco, mas latiu. Foi o suficiente para o seu amigo ouvir o seu pedido de socorro misturado com um desabafar de felicidade.
– Esperem – gritou o menino. É Frank.
De fato, era mesmo o animal.
– Levem-me até ele, rápido – pediu o menino.
Ramiro empurrou a cadeira de rodas na direção de onde tinha vindo o débil latido e viram o pobre Frank em um estado deplorável.
O animal, em um último esforço, conseguiu se levantar e apoiar as patas dianteiras sobre os joelhos de Paulinho. A seguir, encostou a cabeça em suas pernas e, simplesmente, morreu.
Ele só estava esperando para saber as notícias de seu amigo.