FALTOU UM BEIJO NO ROSTO.
Zé do Carmo era um jovem do interior que morava na cidade grande em uma casa de estudante. Era uma residência mantida pelo governo do estado para rapazes pobres que queriam se aventurar na capital para estudar e que não tinham condições de se manter.
Na casa faltava tudo. O desjejum era mirradinho. Somente café com pão e, uma vez ou outra um pouco de leite e manteiga, mas isso era muito raro.
O rapaz estava concluindo os estudos do segundo grau e preparava-se para o vestibular de Engenharia Civil, um sonho raro para os jovens da pequena Leviatã, cidadezinha de pouco mais de quinze mil habitantes onde, talvez, as únicas pessoas formadas fossem o padre e o delegado, que era chamado de doutor porque senão ele se ofendia.
Todos do lugarejo sabiam que Zé do Carmo, filho de Dona Benta e seu Carlito tinha ido pra capital pra estudar. Não sabiam bem o que, mas a grande maioria achava que ele iria voltar sem nem mesmo ter concluído o segundo grau, afinal, outros jovens já tinham se aventurado daquela forma e não tinha dado em nada.
Mas Zé do Carmo era diferente. Persistente e duro na queda, não entregava os pontos por causa de uma fomezinha qualquer. Lá na sua Leviatã ele nunca tinha passado fome, os pais eram pequenos agricultores, mas sempre tinha alguma coisa pra comer, nem que fosse um pouco de quiabo com jerimum cozido ou só um pouco de feijão mesmo, mas tinha.
Na cidade grande as coisas eram muito mais difíceis. Zé do Carmo fazia bico à noite, lavando carros na porta de um cinema grande, bonito, que havia lá perto da Casa do Estudante e era como ele conseguia algum dinheiro pra comprar algo pra comer, mas também, era o mais básico possível. Pelo menos um PF, como diziam, no almoço ou um pão com mortadela pro jantar. Mas havia dias mesmo que nem pra isso ele conseguia. Afinal ele tinha que estudar para o vestibular e, por isso, não dava pra ir todo dia trabalhar de flanelinha na porta do cinema. Havia também algumas pessoas que não pagavam nada e, não raro, o rapaz ia pra casa com fome porque guardava o pouco que tinha conseguido pra garantir o almoço do dia seguinte.
Mas tinha Ary Carlos e Lucinha que estudavam no mesmo colégio. Ele era o amigo do peito que gostava de Zé do Carmo porque ele era estudioso e sempre quebrava seu galho quando chegavam as vésperas das provas de Matemática e Física. Zé do Carmo era, disparado, o melhor aluno da turma em todas as matérias, especialmente nessas duas e Lucinha… bem, Lucinha era um sonho pra Zé do Carmo. Nutria por ela um amor platônico porque nem em sonho tinha coragem de se aproximar daquela menina faceira, cheirosa (ele sabia disso porque gostava de ficar por perto dela pra sentir seu cheiro) e, ainda por cima, estudiosa. Como ela se vestia bem, Zé do Carmo achava que ela era rica e, para poder chegar perto dela precisaria, no mínimo, ser aprovado no vestibular de engenharia. Aí, quem sabe, teria alguma chance?
Ary Carlos, sabendo da situação difícil de Zé do Carmo e, também, querendo puxar o saco do amigo, de vez em quando o convidava pra almoçar na casa dele, principalmente nos fins de semana. Ele morava num sítio, um pouco afastado, em uma bela casa, confortável, com muitas árvores frutíferas que Zé do Carmo aproveitava para encher a sacola nos domingos e levar pra Casa do Estudante, afinal, fruta para ele era um luxo. Ele gostava de jaca porque era grande e dava pra muitos dias, o único problema era que o cheiro da fruta chamava a atenção dos outros colegas de quarto e Zé do Carmo não se negava a dividir com eles, por isso, acabava logo.
Lucinha era muito bonita, cabelos castanhos, rostinho de boneca e usava uns óculos que lhe davam um charme muito especial. Zé do Carmo estava apaixonado pela menina.
Veio o exame de vestibular e, ao final, Zé do Carmo foi aprovado para Engenharia Civil, Ary foi reprovado para Direito e a bela e charmosa Lucinha conseguiu aprovação em Medicina. Que bela médica ela seria! Sonhava Zé do Carmo.
Na comemoração pela aprovação, Zé do Carmo ousou se aproximar de Lucinha e, timidamente, para cumprimentá-la, tentou dar-lhe um beijo no rosto, como fazem as pessoas normalmente.
Que decepção!
A menina virou o rosto e não permitiu que Zé do Carmo a beijasse. Não deu qualquer satisfação, simplesmente se afastou dali e foi conversar com outros amigos, “talvez do seu mesmo nível social” – pensou Zé do Carmo.
Aquilo foi um golpe rude para o rapaz, mas a alegria de ter sido aprovado no vestibular de Engenharia Civil era maior.
No dia seguinte, Zé do Carmo sacolejava em um ônibus velho com destino à sua pequena e querida Leviatã. Precisava contar pessoalmente para os pais porque, celular ele não tinha e, mesmo que tivesse, os pais não sabiam nem o que era isso.
Cinco anos se passaram e Zé do Carmo era agora um engenheiro civil. Tinha estagiado em uma empresa que construía grandes edifícios residenciais e, tão logo se formou, foi contratado.
Em pouco tempo o rapaz se firmou como um dos melhores engenheiros daquela cidade. Agora que ganhava bem, tinha dado uma casa confortável para os pais, lá em Leviatã mesmo, pois eles não queriam se mudar pra capital e já tinha comprado, também, um carro e um apartamento para si.
Mas faltava uma coisa: Lucinha. Onde ela estaria?
Os anos se passaram e Zé do Carmo finalmente se apaixonou por Cláudia, uma médica que comprara um apartamento em um dos prédios que a empresa onde trabalhava Zé do Carmo tinha construído e, no qual, ele trabalhara como engenheiro residente.
Zé do Carmo se casou com Cláudia e tiveram dois filhos: Ana Paula e Antônio Carlos (homenagem ao pai). A vida sorria para o casal e, em breve, tinham um belo patrimônio, uma vida organizada e desfrutavam de um excelente ambiente na sociedade local.
– Gostaria de convidar uma amiga para jantar conosco uma hora dessas. Disse Cláudia para Zé do Carmo.
– Claro, querida, fique à vontade. Quando você quiser. Eu conheço?
– É uma colega médica, que trabalha comigo lá no hospital. É uma ótima pessoa, mas, coitada, não tem dado sorte na vida conjugal. Acabou de se separar do segundo marido. Foi um casamento conturbado. Parece que o marido bebia muito e, dizem, chegou até a agredi-la. Não teve filhos em nenhum dos dois relacionamentos. Ela é mais ou menos da sua idade, uns trinta e cinco anos eu diria, mas, como eu disse, a vida foi dura para com ela e, hoje, ela aparenta ter bem mais.
– Que pena! Mas, como eu lhe disse, convide-a quando quiser.
De fato, no sábado seguinte, o casal se preparava para receber a convidada em casa para um jantar. Como a médica era muito amiga de sua esposa, Zé do Carmo tinha programado que jantaria com elas e as crianças e, depois, encontraria alguma coisa para distrair os meninos para deixa-las à vontade para conversarem. Afinal, pensava, sua esposa era uma pessoa bastante equilibrada e, se fossem conselhos que estivessem faltando à amiga, certamente Cláudia poderia dá-los.
Sábado, nove horas da noite, a campainha do belo apartamento de Cláudia e Zé do Carmo tocou.
Zé do Carmo distraía-se com as crianças com um vídeo game e, da sala de estar, não viu quem estava entrando.
– Querido quero lhe apresentar a minha amiga – disse Cláudia.
Zé do Carmo olhou para a visitante e, ao contrário do que ele mesmo poderia imaginar, não se emocionou, seu coração não acelerou, viu apenas uma pobre mulher, sofrida, maltratada pela vida com um olhar triste, o rosto levemente enrubescido porque o tinha reconhecido, que lhe disse:
– Muito prazer, Lúcia, e ofereceu-lhe o rosto para um beijo.
O CAÇADOR
Flaviano era famoso no Estado do Amapá. Caçador exímio, nunca voltava pra casa de mãos vazias. Veados, pacas, tatus, antas, jacarés, patos selvagens, qualquer bicho que quisesse ele matava com extrema perícia e facilidade.
Ele era tão bom no que fazia que aceitava encomendas. As pessoas lhe encomendavam caças específicas.
– Seu Flaviano, eu tô com vontade de comer uma paca neste fim de semana. Quanto é? – perguntava seu Alarico, o dono da taberna.
Flaviano dava o preço e Alarico já podia contar como certo o seu almoço de domingo: Paca na brasa.
Além disso, Flaviano era também um excelente pescador. Costumava aventurar-se pelo rio Amazonas e seus afluentes. Pescava grandes espécimes e, de vez em quando, tartarugas gigantes, algumas delas centenárias. Gostava de se deixar levar pelas águas do rio Amazonas até aonde ele achasse que era o ponto certo.
Homem prendado e corajoso, embrenhava-se na selva amazônica, quase sempre sozinho, algumas vezes a pé, outras na sua velha caminhonete ano 1981.
Não tinha medo de onça, sucuri ou qualquer outro animal selvagem da mata. Sabia preparar armadilhas e tocaias como ninguém e, além de tudo, atirava bem tanto com seu rifle quanto com sua carabina semiautomática. Possuía os mais modernos equipamentos de pesca. Usava varas, molinetes, redes, tarrafas. Tinha um feeling muito especial para escolher o equipamento adequado para cada local e situação.
Sua preferência, no entanto, era a caça. Sentia um enorme prazer em ver a presa abatida por um disparo certeiro. Possuía extrema habilidade para retirar os couros e tratá-los. Faturava um bom dinheiro com toda essa atividade. Afinal, isso era o que ele fazia na vida.
Ultimamente, Flaviano vinha adquirindo um prazer especial pela caça aos felinos. Não só porque o couro dos animais possuía um alto valor de mercado, mas também, pelo grande desafio que sentia quando tinha que caçar uma onça pintada, essa, em especial.
Era início do mês de março e as chuvas de verão no norte do Brasil eram intensas. Tão fortes que parecia que “alguém tinha derramado um baldo d’água lá de cima”. Essa expressão Flaviano gostava de usar, em tom de brincadeira, para justificar as pesadas chuvas que caíam na região naquela época.
Flaviano se preparava para mais uma caçada. Alguém lhe tinha encomendado um veado, mas ele ia aproveitar para caçar uma onça pintada cujos rastros ele tinha visto na semana passada.
Com aquela chuvarada toda que caía, tanto era fácil seguir os rastros dos bichos se os visse pouco depois de serem feitos como eram fáceis de serem perdidos na próxima chuva. O caçador, no entanto, era esperto e experiente. Não iria perder a oportunidade de abater aquele felino. Ele queria isso a qualquer custo.
De fato, em pouco tempo, o homem já estava com a sua encomenda pronta – tinha abatido um grande veado em poucas horas de caçada – e agora, tocaiava-se para esperar a onça pintada que certamente apareceria para beber água às margens de um igarapé.
O sujeito, habilmente, pendurou a carcaça do veado. Assim, o cheiro de sangue atrairia mais facilmente a sua presa.
Ele sabia exatamente onde e quando esperar e, em pouco tempo, o maior de todos os felinos da América do Sul apareceu. Só que ele, ou melhor, ela, não estava sozinha. Tratava-se de uma onça-fêmea que, acompanhada de seus três filhotes dirigia-se ao igarapé e, ao sentir o cheiro do sangue do veado, parou um segundo para avaliar onde estaria aquela provável presa.
Flaviano viu os filhotes. Contou-os. Percebeu que eram três. Constatou que não teriam mais que alguns poucos meses de idade e que, sozinhos, suas chances de sobrevivência eram mínimas no meio daquela selva. Mesmo assim, ele apertou o gatilho.
O animal tombou, imediatamente, com o certeiro tiro no olho esquerdo. Flaviano mirou ali para não estragar o couro.
O homem desceu da árvore e, mesmo com os três filhotes próximos ao corpo da mãe como quem chora e não acredita no que estava acontecendo, expulsou-os. Rapidamente tirou o couro do felino e abandonou a carcaça para os predadores. Armou uma tipoia e amarrou o corpo do veado. Antes de sumirem na mata os três filhotes pararam como que dizendo adeus a sua mãe e deram um último olhar, só que não em direção à mãe abatida, mas para Flaviano. O homem olhou e percebeu que eram um pequeno macho e duas fêmeas.
Em questão de segundos Flaviano já não se lembrava mais dos filhotes e do fato de que, matando a mãe, ele tinha quase que certamente matado os filhotes também. O que interessava naquele momento era o dinheiro que ele iria receber pelo produto de sua caçada e as estórias que teria para contar nos bares das esquinas da cidade.
O tempo passou e o caçador continuava com sua rotina de caça e pesca. Vivia feliz porque era respeitado pela comunidade. Era quase um herói.
Quatro anos mais tarde, novamente no mês de março, épocas das fortes chuvas, Flaviano se embrenhava na mata para mais uma caçada. Desta vez o objetivo eram animais pequenos: tatus, pacas, jabutis, etc. Tudo encomenda.
Mesmo um homem experiente como Flaviano, às vezes, comete erros, afinal, ninguém é perfeito e, devido ao intenso temporal que caía na selva, o homem não viu um buraco na trilha de pacas e enfiou o pé. A dor foi intensa e, além de quebrar o tornozelo, o caçador ficou com o pé direito preso em uma raiz, de tal forma que não conseguia tirar por mais esforço que fizesse. Passou uma noite inteira assim. Afinal, pensou, aquela chuva em breve passaria e ele facilmente acenderia uma fogueira mesmo sem poder se movimentar e, dessa forma, chamaria a atenção de alguém.
O dia amanheceu mas a chuva não amainou, pelo contrário, intensificou-se mais ainda. Parecia um dilúvio.
O tornozelo estava terrivelmente inchado. Se já era difícil e penoso soltar o pé, agora, com o inchaço, era, realmente, impossível.
O dia inteiro passou e a próxima noite também e a chuva não parava.
Com o nascer do terceiro dia, finalmente, o sol apareceu, mas ele não veio sozinho.
Calmamente, como quem não quer espantar a presa, três onças aproximaram-se de Flaviano. Eram um macho e duas fêmeas. Não fizeram nenhum barulho e, quando o caçador percebeu, os três animais estavam em sua frente. Começaram a rodeá-lo. Pareciam analisar a situação. Olhavam-no nos olhos até que o macho se aproximou e pareceu cheirá-lo. Sentiu o seu odor que, talvez, o lembrasse de fatos acontecidos há alguns anos.
As armas do caçador tinham escapado de suas mãos quando do acidente e da dor repentina e, agora, estavam em um ponto inalcançável por ele, por isso, o sujeito estava à mercê dos três felinos.
Os três animais sentaram-se à frente do caçador e apenas esperaram.
O homem estava apavorado. Seu tornozelo havia infeccionado. Ele sentia febre e começava a delirar. Os animais mantinham-se impassíveis como quem espera que alguma coisa aconteça.
De fato, três dias depois, as três onças pintadas retiraram-se calmamente, da mesma forma como chegaram.
Com o pé preso sob as raízes de uma gigantesca sumaúma havia um homem morto. Ele não tinha nenhum ferimento no corpo a não ser um tornozelo quebrado que infeccionara e provocara a morte por envenenamento da corrente sanguínea.
O ÚLTIMO APITO
O trem de Mutim para Vila Branca fazia o mesmo percurso há 45 anos. A velha locomotiva rangia de tudo quanto era jeito pra vencer a Serra do Urubu e, quando chegava ao topo, soltava o seu grito de vitória.
O apito da Maria Fumaça não apenas avisava que estava chegando. Também levava alegria de uma cidade para a outra. Quando voltava pra Mutim a coisa era muito mais fácil porque era ladeira abaixo e, bem, assim, tudo quanto era santo ajudava.
Bom mesmo era quando ela vinha fungando, ribanceira acima, soltando aquela fumaça que se via de longe e, vitoriosa, soltava o estridente apito avisando a população que estava chegando.
Trazia tudo quanto que era de bicho: cabrito, carneiro, galinha, pato e peru e produtos da roça como quiabos, macaxeira, jerimum, melancia, coco. Trazia jegue para Nhô Tico pra transportar carga pras minas de ouro da redondeza e gente, sempre vinha muita gente. Era gente pra vender, gente pra comprar, pra trabalhar, pra contratar, enfim, aquele trem trazia não só alegria para o povo de Vila Branca, trazia, também, o progresso e a confiança no futuro. Ele era tudo de bom para a população das duas cidades.
Seu Álvaro era o maquinista do comboio desde o primeiro apito. Todo mundo conhecia o velho de cabeça branca, bigode grosso de pontas empinadas e a bela cabeleira branca que reluzia ao sol. Não tinha um fio de cabelo preto. Eram todos brancos de sabedoria. O rosto, enrugado pelos setenta e cinco anos de vida e quarenta e cinco de felicidade conduzindo a sua locomotiva, traduzia satisfação pura e felicidade plena. Ele adorava aquele trabalho. Se existisse alguém que pudesse se dizer feliz, bem, esse alguém era o velho Álvaro, o maquinista.
Cabedela – era esse o nome estranho que o velho Álvaro tinha dado à sua querida Maria Fumaça. Ninguém sabia a razão de nome tão estranho, nem ele mesmo, mas era assim que todo mundo tratava a velha máquina. E ela parecia entender o carinho e o respeito que o povo daquelas duas cidades tinha por ela. Não reclamava de nada, tudo que queria era que não lhe deixassem faltar lenha pra queimar, afinal, era isso que lhe dava forças pra vencer a poderosa Serra do Urubu, tão majestosa quanto a velha Cabedela. As duas pareciam se respeitar.
A chegada na estação de Vila Branca ou de Mutim, não tinha diferença. Seu Álvaro puxava a cordinha do apito, botava um boné de comandante e ia, todo orgulhoso, vistoriar o desembarque de pessoas, coisas e animais. Terminado tudo aqui, enquanto uma nova carrada era colocada nos seis vagões do comboio ele se dirigia ao café da estação e tomava um pingado, café com leite, mais leite do que café dizia para Jonas, o atendente e proprietário do estabelecimento, na verdade, uma concessão mas que era mais dele do que do governo porque ele já estava ali desde não sei quando.
Seu Álvaro dizia pra todo mundo que queria morrer num momento desses, quando já tivesse descarregado o seu trem, despachado todo mundo e as pessoas estivessem se preparando para uma nova viagem. Seria a apoteose. Morreria ali, no meio do povo e nos braços de sua velha Cabedela, a Maria Fumaça querida que morava em seu coração há quarenta e cinco anos. Para ele, era inconcebível qualquer possibilidade de separação, em vida, daquela máquina velha, tão cansada e feliz quanto ele.
O velho Álvaro tinha um filho chamado Ananias que já trabalhava como “segundo-piloto” na velha Maria Fumaça. Tinha aprendido todo o ofício com seu pai, mas era consciente que só poderia assumir o controle de Cabedela quando o velho fechasse os olhos. Qualquer coisa diferente disso era totalmente impensável, fora de cogitação.
Mas aconteceu!
Inexplicavelmente, veio uma ordem da capital determinando que a linha férrea de Mutim para Vila Branca teria que parar, ou melhor, pra usar os termos bonitos do comunicado: seria descontinuada.
Foi preciso que o professor Lenir explicasse pro seu Álvaro o que significava “ser descontinuada”.
– Mas por quê? – perguntava o incrédulo Álvaro – se está todo mundo feliz. O povo todo gosta da Cabedela!
Ninguém conseguia explicar aquilo.
O fato é que, na segunda-feira, Cabidela parou de fungar e soltar a fumaça preta que de longe alegrava os corações dos mutinenses e dos vilabranquenses.
Mesmo assim, todos os dias, seu Álvaro ia até a estação de Vila Branca pra ver se a sua velha amiga estava “precisando de alguma coisa”. Voltava pra casa triste, cabisbaixo, mas, pelo menos, tinha o consolo de que, no dia seguinte, voltaria e conversaria mais alguns minutos com a sua Cabedela.
Isso também não durou muito.
Um dia, pela manhã, seu Álvaro encontrou Jonas, já de volta, mais triste do que tudo.
– Que foi que houve Jonas? Não vai abrir a lanchonete hoje?
– Vou não, Álvaro. Não posso.
– Não pode porque, sô. O que aconteceu?
– Trancaram o portão da estação com um cadeado deste tamanho, ó! – disse Jonas mostrando o tamanho de um cadeado enorme, desses bem antigos.
– Quem foi que fez essa maldade? – perguntou Álvaro.
– Disseram que foi um funcionário do governo, lá da capital que trancou e foi embora levando a chave com ele. Ele disse que tinha ordens pra fazer assim – explicou Jonas.
O coração do velho Álvaro acelerou e ele apertou o passo pra ver se aquela barbaridade era verdade mesmo.
O homem ficou no portão olhando a sua querida Cabedela, sozinha, abandonada, largada e tão triste quanto ele. Era verdade mesmo. Agora nem conversar com ela ele podia mais.
Álvaro voltou pra sua casa e Jonas resolveu ir embora dali. Ia montar outra lanchonete na estação rodoviária nova que estavam construindo numa cidade vizinha.
O velho Álvaro deixou de sair de casa e, como já era de se esperar, adoeceu. Adoeceu de tristeza, disse o doutor Prado, o único médico do lugar. Sugeriu que os familiares conversassem com ele e que procurassem um jeito de desviar sua atenção para outros assuntos. Mas como? Não havia outro assunto que interessasse ao velho maquinista. Ela só falava em sua Cabedela e o fim triste que deram à pobre coitada. Em nenhum momento se referia a si mesmo.
O filho, Ananias, estava preocupado com o estado de prostração do seu velho pai. Não havia nada que lhe desse alegria e o doutor Prado disse que se continuasse daquele jeito, qualquer hora dessas ele iria ter uma parada do coração.
Ananias não queria isso. Resolveu fazer uma viagem. Disse que iria até a capital pra resolver uns problemas, procurar um trabalho e outras coisas mais. Na verdade ele foi até a sede da Rede Ferroviária Federal fazer um pedido. Era um pedido simples.
Voltou dois dias depois e encontrou o seu velho pai ainda pior. Ananias percebeu que o homem estava dizendo adeus. A tristeza da separação brusca de sua Cabedela era forte demais.
Ananias saiu cedo de casa. Pediu a bênção ao seu velho pai e de sua velha mãe, dona Noca, e saiu.
Duas horas depois houve um movimento de gente na direção da estação de trem. Seu Álvaro já não tinha mais forças pra ir até a janela e por isso não viu a alegria estampada no rosto da população de Vila Branca.
A surpresa foi muito grande, da janela da casa da família de Álvaro dava pra ver a estrada de ferro e foi dali que Noca viu quando a velha Maria Fumaça passou e soltou o seu grito vitorioso, pela última vez, no comando, Ananias.
Dona Noca virou-se pra seu marido e, então, percebeu que ele já não respirava mais, mas seu rosto estampava uma fisionomia plácida, serena e plena de felicidade com um sorriso discreto em seus lábios.
Álvaro tinha ido embora, não sem antes ouvir a voz de sua maior amiga uma última vez. Foi embora, sim, mas foi feliz.
POR CINCO VAQUINHAS
– ÊÊÊÊ boi!
Este era o grito do vaqueiro Josivaldo, às cinco horas daquela manhã fria, enquanto tangia as suas cinco vacas em direção ao caminhão que esperava na frente de sua casinha de madeira. Toda branca, janelas vermelhas e, no peitoril de cada uma delas, um vasinho com algumas margaridas que Jacirema tinha plantado. Cuidava delas com muito carinho e elas correspondiam perfeitamente dada a beleza que apresentavam naquela manhã em que o sol nem tinha nascido direito. Na frente, uma cerca de tábuas brancas, impecavelmente alinhadas, todas da mesma altura, com um portão que dava acesso a um lar humilde, mas feliz.
O dinheiro da venda das vacas já tinha destino certo. Seria pra pagar o doutor que ia fazer o parto de Jacirema, que estava grávida de oito meses do primeiro filho do casal. Seu nome seria Carlos José porque Josivaldo achava bonito e porque ele poderia chamá-lo, carinhosamente, de Cazé, apelido de seu velho pai, vaqueiro como ele, mas que um boi malvado tinha mandado mais cedo para junto de Deus.
Um homem com um imenso chapéu de vaqueiro, alto, sujeito de quase dois metros de altura e um bigode de uns dois dedos de grossura, negros, que caía abaixo das bochechas, era o motorista do caminhão. Jacirema não gostava dele, na verdade, tinha medo dele, pois achava que o sujeito tinha cara de mau e tinha dito para Josivaldo não confiar no tal sujeito do caminhão e que recebesse o dinheiro das vacas adiantado. Seu nome era esquisito. Chamava-se Temístocles, mas era conhecido mesmo era como Temista, jeito caboclo de se pronunciar um nome tão complicado.
Josivaldo chegou ao caminhão tangendo as suas vacas.
– Vamo botar elas pra dentro – disse Temístocles. Ocê sobe lá e puxa as corda passada nos chifre e eu empurro de cá.
A operação consistia em fazer com que as vacas subissem ao caminhão por uma rampa de madeira que tinha sido colocada atrás, apoiada na carroceria do veículo velho.
Subiu a primeira, a segunda e era uma trabalheira danada, o sol já tinha aparecido finalmente e Josivaldo suava às bicas. Ele era um homem pequeno, pouco mais de um metro e sessenta, magrinho, mirradinho, sujeito bom que achava que todo mundo era bom como ele.
– Josivaldo, ocê sobe na boleia mais eu que nós vamos passar no comércio de “nhô” Tonho mode eu pegar o dinheiro pra pagar ocê – disse o bigodudo.
Aquilo não tinha sido o combinado. O acertado era que o sujeito pagaria as vacas, ali mesmo, na hora que elas entrassem no caminhão.
Josivaldo ficou sem ação. Olhou pra Jacirema que, da janela onde estava, não podia ouvir a conversa, mas o seu rosto estampava um ar de preocupação como quem está tendo um pressentimento.
– Muié – gritou Josivaldo – eu vou ali mais “seu” Temista mode pegar o dinheiro. É na casa de nhô Tonho. Vou num pé e “vorto” noutro.
Jacirema arregalou os olhos. Não era possível! Ela tinha tido um sonho ruim naquela noite e, não se lembrava direito do final, mas parecia que o seu Josivaldo saía de casa e não voltava mais. Mas Jacirema não podia fazer nada. Apenas acenou com a mão, triste, como quem se despede, e só pôde dizer: “Vorta logo, home”.
O dia foi passando, deu a hora do almoço e nada de Josivaldo voltar. Jacirema estava muito preocupada. O que poderia fazer? O bucho enorme de mulher prenha de oito meses provocava dores terríveis na coluna e, com os pés inchados daquele jeito ficava até difícil de caminhar.
Felizmente foi passando um rapaz de bicicleta. Todos os chamavam de Cadico. Era pouco mais do que um adolescente e, prestativo, todos do lugarejo gostavam dele. Tinha uma grande cicatriz na testa provocada por um tombo de bicicleta, num dia chuvoso.
– Cadico! – chamou Jacirema.
Cadico chegou, parou a bicicleta e perguntou:
– Que foi Dona Jacirema?
– Cadico, ocê me faz um favor?
– Mas é claro, dona Jacirema. O que é que a senhora quer?
– Quero que ocê vá na casa de nhô Tonho e pergunte pelo Josivaldo, meu marido, que saiu daqui pra lá, inda bem cedinho e num vortô até agora. Pergunta por ele por lá e vorta aqui mode me dar uma resposta.
– Pode deixar – respondeu o prestativo Cadico.
Não demorou nem quarenta minutos e Cadico já estava de volta.
Jacirema continuava na janela, com aquele ar aflito de quem sabe que alguma coisa não está indo bem.
– E então? – perguntou.
– Dona Jacirema, o seu Josivaldo num teve hoje lá não. Nhô Tonho disse que faz é dias que num vê ele.
Pronto! Isso foi o suficiente pra Jacirema se desesperar.
– Valei-me minha Nossa Senhora dos Remédios! Me acuda! O que terá acontecido com meu marido?
Jacirema e Josivaldo eram casados direitinho, tanto no civil quanto no católico. Religiosa, ela não tinha aceitado a proposta de ajuntamento que Josivaldo lhe tinha feito primeiro e disse que com ela, só casando. Foi o que aconteceu. Casaram na paróquia de Santa Gertrudes, que ficava ali mesmo, pertinho da casa de Jacirema e Josivaldo e quem celebrou a cerimônia foi o padre Augustinho, um sacerdote, já bem velhinho, cabeça completamente branca.
Foi dele que Jacirema se lembrou naquela hora de angústia. Pediu para Cadico levá-la na garupa da bicicleta até a casa paroquial. Iria pedir ajuda ao padre Augustinho.
Cadico concordou, mas foi só porque não sabia dizer não pra ninguém.
“Imagine, home! Levar uma muié já quase parindo na garupa de uma bicicleta!! Aquilo era perigoso demais – pensava o rapaz – mas acabou levando Jacirema na garupa até a casa do padre.
– Pois foi isso que aconteceu, “pade” Augustinho, e eu tô morrendo de preocupada. O que é que faço? – perguntou Jacirema ao sacerdote.
– Tá bom – disse o padre. Vamos até a delegacia.
O padre tinha uma camioneta velha que fumaçava mais do que andava. Por onde o veículo passava ficava o cheiro de óleo diesel queimado.
Quando chegaram na delegacia, estranharam o amontoado de gente que cercava o prédio. Alguma coisa tinha acontecido.
O delegado, doutor Sinfrônio José de Souza – homem importante no lugar – quando viu a mulher gestante chegar ficou preocupado. Todos desviavam a vista quando Jacirema buscava alguém para olhar nos olhos.
O delegado recebeu os três – Cadico tinha vindo junto, na carroceria da camioneta com a sua bicicleta – pediu que Jacirema sentasse um pouco, pra descansar, e levou o padre para um canto onde lhe contou o que tinha acontecido.
Logo ali, a uns três quilômetros da casa do casal, alguém encontrou o corpo de Josivaldo com um tiro no coração. Estava jogado na beira da estrada, ainda quente, pois tinha acabado de ser assassinado.
Agora tinham que dar a notícia à pobre mulher.
O delegado, mesmo sabendo que era sua obrigação fazer isso, estava com medo. O padre pediu que Cadico fosse buscar um médico. Ele foi, mas voltou dizendo que o doutor não podia vir pois “tava cuidando de uns doentes lá”.
Quem iria contar pra Jacirema?
Jacirema tinha entendido tudo e o destino decidiu poupar aqueles homens do desconforto de contar-lhe o que tinha acontecido.
A dor tinha sido tão grande que, quando os homens chegaram, encontraram a mulher com a cabeça jogada para trás, no velho banco de madeira, inerte, sem vida. O coração da jovem, machucado pelo barbeiro que provocou a doença de Chagas, não suportou a dor.
Uma voz se fez ouvir: “Temos que salvar a criança”.
Era Cadico, o mais improvável, o menos culto, mas era quem tinha um coração que não sabia dizer não e, ali, na barriga daquela mulher morta, poderia haver uma criança com vida.
– Vamos levar ela pro doutor. Talvez ele possa salvar o menino – disse, com extrema sabedoria, o jovem e bondoso Cadico.
Alguns anos depois, um homem, já com seus trinta anos, com uma grande cicatriz na testa, sentado em uma cadeira de balanço, à tardinha, responde a uma criança que, chegando da escola, lhe diz:
– Benção, pai!
– Deus te abençoe, meu filho Cazé!
UMA MORTE DIGNA
Madalena pousou seu novo avião na frente de sua casa. Era um modelo para duas pessoas, controlado por robô que voava a baixa altitude, apenas para pequenos percursos. Desceu rapidamente com Gabriel, seu filho de quinze anos, que, daquela vez não quis usar a sua própria aeronave preferindo pegar uma carona com a mãe na volta do treinamento de lutas marciais para economizar um pouco de combustível.
Era o ano de 2135 e a vida estava cada vez mais selvagem. Saber se defender era primordial para se manter vivo. Todos praticavam alguma luta para sua defesa pessoal porque, com a extinção da polícia, há cinquenta anos, a vida passou a ser cada um por si.
Tudo era difícil e racionado, especialmente água, comida e combustíveis. O governo usava todo o seu aparato de segurança pública apenas para defender as suas reservas de água e os frequentes ataques de nações clandestinas em busca desse produto fazia com que o mundo todo estivesse em guerra.
Nações foram criadas à revelia da extinta ONU – Organização das Nações Unidas – por absoluta inépcia daquele órgão no que dizia respeito à proteção e à promoção da distribuição de riquezas. A população mundial, por volta de 65 bilhões de habitantes, revoltara-se contra os governos e, agora, muitos países desrespeitavam as fronteiras e as nacionalidades e, simplesmente, invadiam qualquer nação em busca do que mais precisavam: água, comida e combustível.
Era comum verem-se pessoas com tremedeiras nas mãos devido à ingestão de carne humana. Isso era normal.
Qualquer animal poderia se transformar em uma bela refeição. Os gatos e cachorros, extintos há mais de setenta anos, eram os pratos favoritos nos anos 2060 e Madalena os conhecia apenas por fotos e ficava imaginando quão deliciosos deveriam ser aqueles animais assados ao forno ou cozidos em um belo molho de pimenta.
O pequeno avião manobrou sozinho e, após dobrar as asas, agasalhou-se na garagem da casa, ao lado daquele que pertencia a Gabriel. Era preciso estar a postos porque, a qualquer momento, seriam divulgadas as senhas para que as pessoas fossem aos postos de distribuição receber as suas pílulas de hidratação. Eram divulgadas pelos canais exclusivos de TV que cada residência possuía.
Madalena tinha sorte porque tinha conseguido comprar uma casa modular de doze metros quadrados que, com um simples toque no controle remoto se transformava no cômodo que os moradores estavam precisando no momento. E, agora, eles precisavam de uma confortável sala com sofá e TV, tudo embutido nas paredes, é claro, para os quais ela já tinha mandado uma mensagem via internet para que cada objeto estivesse pronto para as suas funções.
Bem a tempo!
Mal se sentaram no sofá e o sinal para que Gabriel usasse o seu receptor, codificador, fosse posicionado de tal modo que somente ele soubesse a sua senha. Nem mesmo a sua mãe poderia saber. Isso, se acontecesse, seria considerado crime de alta traição para com o governo cuja punição era uma só: pena de morte por injeção letal, extração de todos os órgãos importantes do corpo e o restante destinado às indústrias de preparação de enlatados.
A mesma coisa aconteceu com Madalena e, imediatamente, ambos dirigiram-se para os seus respectivos postos para receberem as suas pílulas. Ninguém sabia onde o outro recebia nem quanto recebia. Sabia-se apenas que, à medida que as pessoas iam envelhecendo, a porção de pílulas diminuía, justamente para que a vida não se prolongasse por muitos anos. O mundo não comportava mais idosos e o limite máximo para a existência de qualquer ser humano era trinta e cinco anos. Quando qualquer cidadão atingia essa idade ele se dirigia ao local conhecido como plataforma de extermínio onde o governo dava cabo de sua vida o destinando corretamente o corpo, ou seja, seria transformando-o em alimento.
Por isso, era comum as pessoas decidirem acabar com a própria existência próximo dessa idade porque, assim, poderiam escolher uma morte digna, sem sofrimento, no momento em que queriam e ao lado de quem quisessem. Qualquer farmácia vendia os kits de eutanásia. Não havia limites de idade para as pessoas comprarem, pelo contrário, o governo incentivava os cidadãos a tomarem aquela atitude cada vez mais jovens. Madalena já tinha comprado o seu e também incentivava Gabriel para que não se demorasse muito, até achava uma boa ideia os dois partirem juntos. Quem sabe, assim, o jovem sofreria menos com as condições cada vez piores de sobrevivência!
Gabriel voltava para sua casa com as valiosíssimas pílulas que tinha recebido. Desta vez fora contemplado com uma porção generosa que daria, pelo menos para os próximos dez dias.
Um fato raro!
Com certeza, Madalena não teria conseguido uma porção para mais do que quatro ou cinco dias, o que era comum na idade avançada em que ela já estava, trinta anos.
Dois homens interceptaram o jovem na rua. Queriam as pílulas. O que eles não sabiam era que Gabriel era especialista em vários tipos de lutas marciais e, apenas dois sujeitos, não eram páreo para ele.
Fingindo que iria entregar o precioso pacote aos homens, desferiu, com as próprias mãos, apenas dois golpes fulminantes que perfuraram os pescoços dos adversários causando-lhes morte imediata.
Por um momento Gabriel pensou em levar os dois corpos para sua casa, pois isto poderia significar vários dias de comida fresca, mas, assim, estaria cometendo um crime inafiançável e imprescritível punido com a pena de morte. Matar não era crime, mas ocultar os cadáveres, sim.
O rapaz deixou os dois infelizes ali mesmo e voltou para casa.
Ao chegar, notou que a residência estava em um profundo silêncio. O avião de sua mãe estava na garagem, ao lado do seu. A casa estava sob o formato de quartos de dormir e Gabriel decidiu bater na porta daquele que pertencia a sua mãe. Como ela não respondeu, ele apenas empurrou a porta que estava aberta. Em sua cama, Madalena jazia morta e, em suas mãos, havia um bilhete de despedida no qual ela dizia que estava cada vez mais difícil conseguir as pílulas e que, daquela vez, o governo lhe informara que ela receberia apenas uma a cada três dias o que seria insuficiente para lhe aplacar a sede, sendo assim, sabiamente, tomou a decisão de partir.
Gabriel leu o bilhete e achou que a mãe tomou a decisão correta. Aproximou das pupilas de sua mãe, agora já sem brilho o seu SK-4200, aparelho de comunicação de última geração. A imagem fornecia os dados como causa mortis, local do corpo, sexo e idade do cadáver, além da completa identificação, é claro e, dentro de cinco minutos, o avião-tumba do governo desceu, verticalmente, em frente à residência de Madalena para recolher o corpo e enviá-lo para as indústrias de processamento de carne.
A vida prosseguia para Gabriel, mas ele também não tinha vontade de ir muito longe.
VIDA DE CAMINHONEIRO
Três horas da manhã. Um caminhão corta as estradas do interior da Bahia. Ao volante, José Antônio, há mais de trinta horas sem dormir, precisa chegar ao seu destino para entregar a sua carga dentro do prazo previsto. Para isso, não há tempo para dormir.
As luzes contrárias focam em um caminhão a mais de cento e vinte Km/h. Agora já são seis horas e o movimento na estrada começa a aumentar. Terá que reduzir a velocidade, mas, felizmente, seu destino já está próximo.
O engarrafamento infernal nas proximidades das cidades de grande e médio porte são as únicas coisas que aborrecem José Antônio. Ele já está acostumado a ficar sem dormir, sem comer, a ser assaltado, a ter o caminhão quebrado devido ao péssimo estado de conservação de algumas estradas, mas, com os engarrafamentos, não. Esse é o seu grande tormento.
Finalmente, por volta das dez horas, o caminhão carregado de motores elétricos estaciona na porta da fábrica. José Antônio desce do veículo, apresenta os documentos ao porteiro e recebe a autorização para entrar. Agora falta pouco para ele poder dormir algumas horas, se tiver sono, porque ele tomou uma dose extra de “arrebites” para conseguir ficar “ligado”.
Terminou o descarregamento e José Antônio, finalmente, começa a sentir um pouco de cansaço. Já tem em mente o posto de gasolina onde ele poderá estacionar sua carreta, tomar um banho, comer alguma coisa, tomar uma ou duas pingas e, finalmente, tirar um bom sono.
O celular tocou.
– Alô!
– Zé? – pergunta uma voz do outro lado da linha.
– Ele mesmo. – responde uma voz cansada do lado de cá.
– Você já descarregou?
– Terminei agora mesmo.
– Você precisa vir agora pra cá porque o patrão tem uma carga pra você levar pro Rio Grande do Sul. E é urgente.
Sem pensar direito, José Antônio responde.
– Tô indo.
O motorista, usando de toda a sua perícia, conduz o gigante de aço para a periferia onde fica a central de cargas da empresa para a qual presta serviço. O caminhão é seu e ele firmou um contrato com aquela empresa para atendê-la o mais rápido possível. Pagam bem e pagam em dia. Não lhe cabe questionar prazos, percursos ou distâncias.
No caminho, tem que passar por vielas e curvas fechadas onde “é impossível” que um caminhão como aquele passe. Mas ele passa.
José Antônio já esqueceu que estava cansado.
Enquanto carregam o seu caminhão ele toma mais alguns comprimidos e, em pouco tempo já está pronto para retomar a estrada. Fome ele não sente há muito tempo.
Desta vez é uma carga de produtos semi-industrializados, polipropileno, que será usado como insumo em uma grande empresa química do sul do Brasil. A viagem será longa, mas, pra ele, já não faz diferença. São quase três mil quilômetros que são percorridos em pouco mais de trinta e três horas com dois motoristas. José Antônio terá que fazê-lo em vinte e cinco horas sozinho.
Os arrebites são o seu repouso, seu alimento e sua diversão. Com eles as estradas passam mais rápido, não se sente o tempo e não há cansaço. Sim, na vida de José Antônio, não há espaço para essas coisas, afinal, a prestação do caminhão é pesada e ele precisa pagar em dia além de manter a família que ele não vê há mais de quarenta dias.
Mais uma vez, as luzes das estradas passam por ele em uma velocidade intensa.
De fato, o motorista consegue vencer a distância no tempo recorde de vinte e quatro horas e trinta minutos, cronometrados. José Antônio só parou para abastecer o caminhão. O que importa é que a carga chegou a tempo e que ele, agora, com este pagamento, está quase completando o valor da prestação do veículo.
Mais uma vez a estória se repete e o celular de José Antônio toca de novo. Mais uma vez ele não consegue dizer não.
Passa no lugar de sempre, compra mais algumas pílulas para abastecer o seu estoque que já estava quase no fim e parte para mais uma viagem. Agora, terá que ir para o norte do Brasil, Belém do Pará.
Tratava-se de um carregamento de MDF, matéria prima para a indústria moveleira que já deveria ter chegado lá há três dias. O cliente já estava furioso, ameaçando processar a transportadora e, agora, cabia a José Antônio fazer o milagre de percorrer três mil, oitocentos e cinquenta e quatro quilômetros em, no máximo, trinta e duas horas. Humanamente impossível – disseram os companheiros – mas não para José Antônio. Afinal, depois daquela viagem, ele finalmente teria o dinheiro para pagar a prestação do caminhão, sobrariam uns trocados e poderia, enfim, ir para casa ver Maria José e os meninos e descansar uns dias.
Hamilton era um amigo de José Antônio de longas datas. Vendo que o companheiro estava em um péssimo estado, perguntou-lhe:
– Zé, faz quanto tempo que você não dorme?
– Não se preocupe, meu chapa, tô tomando os bichinhos que me garantem – disse José Antônio referindo-se aos arrebites.
– Não senhor – retrucou Hamilton. Você tá um caco e eu não vou deixar você partir para uma viagem doida como essa sem dormir. Aproveita que o posto tá silencioso e tira um cochilo.
Tanta foi a insistência do amigo que José Antônio resolveu atendê-lo. A cabine do caminhão, confortável, acomodou o velho caminhoneiro e toda a sua preocupação com o valor da prestação do veículo.
Só que José Antônio não conseguia dormir de tanto arrebite que ele tinha tomado. Estava completamente ligado.
Olhou para a carreta do amigo e viu que ele estava dormindo. Não teve dúvidas. Foi até o banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho e concordou que estava com ar de cansado mesmo, mas era só esta viagem e depois ele iria descansar.
Ligou o motor de seu caminhão e saiu de fininho. Em pouco tempo devorava as estradas do sul rumo ao norte.
Depois de mais de vinte horas dirigindo sem parar, em uma curva, uma outra carreta cruzou com ele em alta velocidade e com os faróis altos.
José Antônio ficou cego por um segundo e foi o suficiente para ele sair da estrada. Ninguém saberia dizer quantas vezes o caminhão capotou, o fato era que, finalmente, após dias e dias dirigindo sem comer e sem dormir, José Antônio, finalmente, adormeceu.
FLOR DE LÓTUS
Aldo conheceu Emília na Faculdade. Ambos cursavam Física Nuclear em uma grande universidade e se destacavam entre os demais alunos. Costumavam estudar juntos, passear juntos, etc. Eram dois grandes amigos. Na verdade, nenhum dos dois jamais quis qualquer coisa com o outro além da amizade. Respeitavam-se mutuamente tanto por suas inteligências, quanto pelo caráter. Ambos tinham opiniões coincidentes em muitos aspectos, exceto um: Aldo não acreditava na mínima possibilidade de existência de vida extraterrestre, enquanto Emília pensava exatamente o contrário. Nunca chegaram a discutir seriamente por isso, mas sempre que conversavam a respeito gerava-se um pequeno mal estar entre ambos.
Aldo até evitava tocar no tema, mas, curiosamente, este era um dos assuntos preferidos por Emília. Sabia tudo sobre OVNI’s, UFOLOGIA, aparições suspeitas no céu, áreas militares secretas, testes que não eram divulgados, enfim, qualquer assunto a respeito de vida extraterrestre interessava à moça.
Após mais um dia de aula, sentados à sombra de uma árvore no Campus Universitário, Emília puxou novamente o assunto.
– Estive lendo um artigo em uma conceituada revista científica que garante que existem seres de outros planetas, que eles estão entre nós há centenas de anos estudando nosso comportamento, nossas fraquezas e pontos fortes – disse Emília.
– Eu gostaria de saber como é que esses pseudocientistas sabem essas coisas. Todas as teorias que foram levantadas até agora não tiveram qualquer comprovação – retrucou Aldo.
– Pois saiba que esse artigo a que me refiro afirma, também, que eles têm poderes que nós consideramos sobrenaturais.
– Ora, Emília, não vá querer me dizer que eles voam, são imortais ou coisas do gênero – falou com total desconfiança o jovem cientista.
– Pois uma das coisas que o autor do artigo afirma é que eles se quiserem, e quando quiserem, podem vencer a força da gravidade e superar fenômenos como descargas elétricas, levantar pesadas cargas, etc.
– Bem. Já vi que sobre este assunto nós não vamos chegar nunca a lugar nenhum. Que tal falarmos de seus planos após a formatura? – perguntou Aldo encerrando o assunto.
Estavam prestes a concluírem o curso de Física Nuclear e todos os formandos já tinham destino certo. As maiores empresas de energia nuclear, ou Governos de Nações consideradas desenvolvidas, enfim, todas as grandes corporações da área nuclear em todo o planeta tinham interesses naqueles jovens.
Aldo e Emília, afinal, iriam se separar. Ele iria para um projeto de construção dos mais modernos submarinos por propulsão nuclear e ela fora contratada por um grande Instituto de Pesquisa Nuclear, ambos em países diferentes.
Eram os últimos dias de aula e os jovens formandos organizavam festas de despedidas e o grande evento que seria a formatura.
No baile de formatura, Emília, uma loura de olhos verdes da cor de esmeralda, destacava-se por sua beleza e elegância. Usava um vestido longo, preto e irradiava alegria por onde passava contaminando a todos.
Dançava com o seu par preferido, seu amigo Aldo, chamando a atenção de todos. Muitos achavam que os dois nutriam um namoro às escondidas o que não era verdade. No começo Aldo até tentou iniciar um romance com a jovem, mas foi educadamente repelido. Todos os rapazes da turma tentaram, mas nenhum obteve êxito.
Naquela noite, Emília deu-lhe um presente de despedida. Era uma peça em ouro que representava a metade de uma flor de lótus branca e explicou-lhe que era uma flor aquática que, em alguns países, significava o nascimento divino, o crescimento espiritual e a pureza do coração e da mente e que, no momento oportuno ela lhe daria a outra metade. A branca, em especial, significava o espírito, a mente e a pureza.
O tempo passou, os amigos se despediram e cada um seguiu o seu destino. Aldo e Emília já não se viam mais, exceto pelos canais de comunicação via internet. Falavam-se todos os dias.
Aldo já era muito conceituado na empresa em que trabalhava e, em breve, lançaria ao mar, um novo submarino por cujo projeto ele era um dos responsáveis.
Tratava-se de uma maravilhosa máquina de guerra. Todos a consideravam perfeita, com autonomia praticamente infinita, alcance de suas armas jamais atingido por nenhuma outra embarcação, enfim, era quase a perfeição.
Chegou o dia de lançamento ao mar e Aldo estava a bordo de sua criação. Sentia-se extremamente orgulhoso e feliz.
O equipamento mergulhou e dirigiu-se às profundezas do oceano. Mergulhado nas gélidas águas do pacífico o submarino parecia absoluto. Incrivelmente silencioso, espaçoso e confortável, abrigava também uma carga mortífera com as mais modernas armas de guerra já concebidas pelo homem.
Em um dado momento, no entanto, o impensável aconteceu. Uma explosão sacudiu a embarcação de ponta a ponta e, em poucos minutos a tripulação estava à deriva, ao sabor do oceano. O oxigênio em breve acabaria e o risco de contaminação por radiação pelo urânio combustível era iminente.
Parecia que estavam todos condenados à morte certa.
A falta de oxigênio fez com que todos a bordo desmaiassem. A morte aconteceria em questão de minutos. Repentinamente, algo aconteceu. A embarcação, totalmente sem comando, começou a flutuar e, quando chegou à superfície a escotilha se abriu. Um vulto adentrou a embarcação e verificou que todos ainda estavam vivos. Tomou as providências técnicas para isolar a radiação e, aproximando-se de Aldo, depositou em sua mão a metade de uma flor de lótus branca, em ouro.
Dentro de alguns minutos os tripulantes começaram a despertar e a se dirigirem para o exterior. Aldo, ainda atordoado, retirou do bolso a outra metade da flor de lótus e viu que se encaixava perfeitamente com a que encontrou em sua mão quando despertou. Algo no céu lhe chamou a atenção. Um objeto grande, brilhando intensamente e que pairava sobre as suas cabeças, resplandecia no céu daquela tarde, quase noite. Deu umas voltas sobre o submarino e sua assustada tripulação e partiu, repentinamente, a uma velocidade jamais vista por qualquer habitante da terra.
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A SALVAÇÃO
Eduardo Andrada era um próspero homem de negócios. Tinha um faro aguçado para a bolsa de valores e investia muito forte. Nunca perdia.
Ao contrário do que lhe recomendavam os especialistas, ele não acreditava “nessa estória de diversificar os investimentos”.
– Sou bom é na Bolsa de Valores! Sei quando uma ação vai subir ou vai cair! Sinto no ar. – Gabava-se o investidor.
De fato, o homem já acumulava uma riqueza considerável conseguida toda nesse tipo de aplicações. Os amigos costumavam consultá-lo para saber se valia a pena investir em empresa A ou B.
Eduardo não se fazia de rogado e orientava a todos. Era, sob esse aspecto, um homem bom, não queria só para si. Principalmente porque, perto do que ele investia, o investimento dos outros era uma ninharia.
Eduardo era casado com Dona Maria Gorete, uma mulher muito religiosa, devota de Nossa Senhora das Dores e não faltava uma missa aos domingos. Levava sempre o marido e os dois filhos Antônio José e Maria das Graças. Na verdade, o marido ia somente para acompanhar a esposa por quem tinha verdadeira adoração. Amava a família mais do que tudo no mundo.
Maria Gorete tinha dado a Eduardo uma medalha com a imagem de Nossa Senhora das Dores e pedido ao marido que jamais a tirasse do pescoço. A imagem era feita em aço puro, tinha cerca de dois centímetros de diâmetro, era bem pesada, fora abençoada pelo bispo local e a mulher acreditava verdadeiramente no poder que ela teria.
Eduardo não acreditava naquilo, mas, para não contrariar a esposa, decidiu usá-la.
Procurava dar sempre o melhor que podia à esposa e aos filhos. Passeios maravilhosos, roupas sempre da última moda, embora Maria Gorete não fizesse tanta questão disso. Os filhos estudavam nos melhores colégios da cidade e, naqueles dias do ano de 1929, não era qualquer família que tinha um carro. Eduardo tinha dois.
O jovem investidor, milionário, não tinha do que reclamar, afinal, tinha uma mulher bonita e que o amava muito. Dois filhos maravilhosos, estudiosos e obedientes que só lhe davam orgulho. A vida estava voando em nuvens brandas, céu de brigadeiro.
Então, sem que ninguém esperasse, veio o CRASH. A bolsa de Nova York quebrou e arrastou para a miséria milhares de pessoas.
O mundo todo se viu, repentinamente, perdido. Nada do que se esperava dos negócios se concretizou. Nem mesmo Eduardo, com seu faro inigualável, infalível até então, escapou.
Em vinte e quatro horas a fortuna do homem virou fumaça.
Em todos os lugares havia casos de suicídio. Os antigos ricos não suportavam o fato de que tinham virado pobres de uma hora para outra.
Eduardo teve que se desfazer dos carros, da bela casa em que moravam, tirou os filhos do colégio caríssimo em que estudavam e, mesmo assim, não tinha dinheiro pra mais nada.
Estava perdido, não havia salvação! – Pensava o ex- investidor.
– O que é que eu vou fazer da minha vida? – Dizia para si mesmo.
Resolveu procurar os amigos que o procuravam nos velhos e bons tempos. Afinal sempre dera bons conselhos a todos, ajudou todo mundo nas decisões. Certamente, agora que ele precisava, não iriam lhe faltar.
O primeiro que ele procurou foi Hamilton, um empresário que, ao contrário de Eduardo, sempre procurou diversificar os investimentos. Tinha uma fábrica de sapatos, de médio porte e perdera muito dinheiro na bolsa, mas, sobrara-lhe a própria fábrica que, agora, permitia que ele sobrevivesse mais modestamente, é claro, mas dava para levar a vida sem desespero.
Hamilton não quis nem mesmo conversar com Eduardo.
Procurou André, um fazendeiro que procurava Eduardo com muita frequência em busca de seus conselhos e… nada. Ele também não podia fazer nada por ele.
Um após os outros os antigos amigos foram se afastando e, agora, desesperado, Eduardo não tinha outra opção na vida a não ser … tirar a própria vida.
Não suportava chegar em casa e ver o outrora alegre e rico ambiente familiar transformado em um ambiente de tristeza e desesperança e a culpa, achava, era unicamente dele.
Por que ele não investiu em outras coisas. Poderia ter sido fazendeiro como André ou ter alguma fábrica como Hamilton, talvez uma rede de farmácias, mas, não, ele achava que o mundo dos negócios era apenas a Bolsa de Valores e, agora, não tinha mais nada na vida a não ser dívidas, dor e a tristeza de ver que o seu mundo virou fumaça de uma hora para outra.
Estava em casa sozinho. Na gaveta um revolver calibre 38. Um tiro seria o suficiente para acabar com todos os seus problemas. Duraria apenas um segundo. Talvez nem sentisse dor.
Naquele momento ele não pensava mais na esposa, nem nos filhos nem no trauma que o seu gesto tresloucado provocaria na família. Tudo o que ele queria era desaparecer. O mundo não lhe interessava mais.
Apontou o revólver para o peito e disparou. O homem caiu ao lado da escrivaninha onde ele guardava a arma fatídica.
Mais tarde, Maria Gorete chegou com as crianças. Tinha ido apanhá-las no colégio público onde, agora, estudavam. Estava radiante porque tinha recebido uma notícia maravilhosa e estava ansiosa para dividi-la com o marido.
Chamou-o e, como não respondesse, resolveu entrar no pequeno escritório onde o marido costumava se refugiar ultimamente.
Encontrou-o desfalecido, mas ainda estava vivo.
Imediatamente chamou uma ambulância que o transportou para o hospital.
Eduardo escapou milagrosamente. A bala disparada contra o seu peito atingiu em cheio a forte medalha de Nossas Senhoras das Dores com a qual esposa o tinha presenteado. O homem desmaiou com o impacto sobre o coração, mas a bala ricocheteou e cravou-se na parede do escritório.
Após algumas horas, finalmente, Eduardo pode receber visitas, mas estava profundamente deprimido. Não queria mais viver.
– Eduardo, querido, tenho uma grande notícia para lhe dar – disse-lhe a esposa
Eduardo apenas olhou para a mulher, sem acreditar que ela tivesse alguma novidade que fosse capaz de alterar a situação de penúria em que viviam.
– Sabe aquele meu tio-avô, solteiro que mora em Minas Gerais?
Eduardo balançou a cabeça afirmativamente.
– Lamentavelmente ele faleceu mas deixou a fazenda com milhares de cabeças de gado para nós.
Eduardo olhou para a escrivaninha ao lado da cama, estendeu a mão, pegou a medalha de N. S. das Dores bastante amassada pelo disparo, levou-a à boca e deu-lhe um beijo.
Olhou para a esposa e não teve vergonha que ela visse duas grossas lágrimas que desciam pelo seu rosto.
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UMA FOTO EM PRETO E BRANCO
Era o ano de 1980.
Na faculdade de medicina de uma cidade do norte do Brasil dois jovens se encontram.
A afinidade entre os dois é muito grande e, logo começa uma amizade que em pouco tempo se transforma em algo muito mais profundo, mais sério e que prometia ser eterno. Quem os visse, certamente diria que aqueles dois vieram ao mundo para se completarem.
Naquela época, os recursos de fotografia eram parcos e só se poderia saber que uma foto tinha ficado boa quando se a revelasse. A jovem, que se chamava Isaura, presenteou o namorado com uma foto em branco preto, tamanho 5 x 7, em que se destacava o seu belo e simples rosto de menina pobre, sem maquiagem. No verso ela pedia ao jovem, que se chamava Olavo, que a guardasse porque enquanto a mantivesse consigo, ela o acompanharia onde quer que ambos estivessem.
Era uma jura de amor eterno.
A jovem Isaura gostava de presentear o namorado com balas de hortelã, um presente barato, comprado em qualquer esquina, mas que se tornara sua marca registrada. Sempre que o rapaz conseguia uma vitória, fosse uma boa nota em uma prova, a aprovação no fim do ano, enfim, nos grandes e pequenos acontecimentos, Isaura o presenteava com balas de hortelã.
Filhos de pais de classe média baixa, moradores de um bairro pobre, perceberam a necessidade de se ajudarem mutuamente e o amor que brotou entre os dois levou-os ao altar.
Tão logo se formaram em medicina, profissão que ambos, coincidentemente, almejavam desde a infância, casaram-se e resolveram praticá-la em uma das muitas cidades pobres do interior do norte do Brasil.
A união deu-lhes um filho, cujo nome, o pai, orgulhosamente, já tinha escolhido há muitos anos no qual tinha todo o apoio de sua Isaura. O menino deveria chamar-se Elias. Era algo pessoal, do pai.
As coisas, no entanto, não saíram como os jovens previram. O menino Elias nasceu prematuramente, com apenas seis meses de gestação e Isaura teve imensas complicações no parto vindo a falecer.
Antes de morrer, no entanto, pediu ao marido que cuidasse do menino com todo o amor que ele pudesse ter na vida.
Olavo viu-se, então, aos vinte e oito anos, viúvo com um filho prematuro de seis meses que precisava de cuidados médicos intensos, morando em uma cidade do interior. Não via outra alternativa senão esperar que o menino adquirisse as condições mínimas de sobrevivência para voltar para a sua cidade onde poderia ter ajuda de seus parentes.
Naquele tempo os pais do jovem médico já tinham morrido e as coisas estavam muito mais difíceis.
Era preciso transpor muitos obstáculos.
Apesar de todos os percalços o menino crescia com saúde e desenvoltura.
Em um certo momento, Olavo achou que deveria casar-se novamente. Afinal, um homem precisa de uma mulher, pensava.
De fato, casou-se com Samara achando que, finalmente, poderia construir uma nova família e dar uma segunda mãe a seu Elias.
Ledo engano!
Samara não gostava do menino e o maltratava aos olhos de todos com espancamentos e agressões verbais.
A situação piorou mais ainda quando vieram os filhos do novo casal. O pai não sabia o que fazer diante de tal situação, mas tinha prometido a Isaura que cuidaria do filho em todos os momentos de sua vida.
Secretamente, quando se sentia só e deprimido, chateado com a situação em que se encontrava o menino, olhava a foto da jovem Isaura e as suas forças e esperanças se renovavam.
O menino cresceu e, agora, rapaz, decidiu seguir a mesma profissão do pai. Tornara-se médico obstetra. Tinha decidido ajudar as crianças a virem ao mundo de forma humana e confortável e encarava como um verdadeiro desafio quando uma delas nascia de forma prematura.
Conhecia toda a sua estória e via-se naquelas crianças que sequer podiam pedir-lhe ajuda. Não precisavam fazê-lo, pois ele estava ali para isso.
Finalmente, Olavo conseguiu ter a paz com que sempre sonhara ao ver o filho bem-sucedido na vida, mas o destino sempre guarda surpresas para todos.
Uma noite, ao sair de um hospital onde tinha ajudado uma menina a nascer, o jovem Elias dirigia seu carro por uma avenida movimentada da cidade. Era sábado e muitos jovens estavam saindo das baladas, quando um automóvel, dirigido por um rapaz completamente embriagado, atingiu, em cheio, o carro do jovem médico.
Às cinco horas da manhã Olavo atendeu o telefone. O hospital avisava-o que o estado clínico do seu filho era crítico. Era preciso submetê-lo a uma delicada cirurgia para retirar um coágulo do cérebro e não havia um neurocirurgião disponível.
Olavo não pensou duas vezes e se dirigiu ao hospital o mais rápido que pode.
Médico conhecido na cidade, também obstetra como o filho, foi recebido pelos colegas que atenderam a Elias. Lamentavelmente nada poderiam fazer, pois nenhum deles, não sendo neurocirurgiões, se arriscaria a uma cirurgia tão delicada.
– Eu faço. – Disse o Olavo. Vamos cuidar disso imediatamente.
É fato que os médicos não gostam de atender os seus parentes próximos, mas, naquele momento, Olavo não pensou em outra coisa a não ser salvar a vida de seu filho.
O estado clínico do rapaz, apesar de alguns ossos fraturados inspirava cuidados apenas pelo coágulo que se formara no cérebro. Era imperativo retirá-lo imediatamente.
Os demais médicos entenderam que ali, muito mais do que um médico reconhecidamente brilhante, estava um pai disposto a tudo para salvar a vida de seu filho.
Doze horas de cirurgia. Todos estavam cansados. O Dr. Olavo, que jamais fizera uma intervenção como aquela, estava exausto, mas a cirurgia tivera êxito.
Estava consciente de que o filho estava fora de perigo, então, retirou-se para seu consultório e, sozinho, retirou o retrato de sua Isaura da gaveta, olhou-o intensamente, e chorou.
Após algum tempo, já recuperado, decidiu descansar um pouco. O médico adormeceu ali mesmo, e, após algumas horas, acordou.
Lembrou-se de tudo que tinha ocorrido e já se preparava para visitar o filho que estava na UTI quando reparou em um pequeno pacote que estava sobre a mesa.
Curioso, abriu-o e viu que havia, ali, algumas balas de hortelã.
KARINE
Karine engravidou aos dezoito anos.
Moça de classe média alta, bastante esclarecida, entendeu que, naquela idade, a gravidez iria atrapalhar seriamente os seus planos de se formar em economia, fazer um mestrado no exterior e conseguir um bom emprego em uma multinacional. Dessa forma, a moça não teve dúvidas e, sem sequer dar conhecimento aos seus pais, procurou um meio de abortar, o que conseguiu com relativa facilidade.
De fato, a vida prosseguiu de acordo com os planos traçados pela jovem e, aos vinte e cinco anos, já estava concluindo um mestrado em economia em uma grande universidade no exterior.
Foi aí que ela conheceu Robert, um jovem economista, mestrando como ela. Entre os dois desenvolvia-se uma química muito boa e, logo, começaram um relacionamento que culminou com a segunda gravidez de Karine.
Mas isso ainda não estava nos planos da jovem e, novamente, ela deu um jeito de provocar o aborto. Desta vez, porém, ela demorou um pouco mais e já dava até para saber o sexo do bebê: seria uma menina. Isso não foi obstáculo para Karine que levou seu plano até o fim.
De volta ao país, a jovem e preparada economista não teve dificuldades para conseguir um excelente emprego com fortes possibilidades de uma transferência para o exterior. E ela, em pouco tempo, conseguiu isso.
Karine era uma moça de muitos amores. Bonita, inteligente, socialmente bem posicionada, excelente condição financeira, não tinha nenhuma dificuldade nessa área, além disso, a sua vida profissional progredia a olhos vistos. O sucesso era companheiro frequente da bela jovem.
Um belo dia, Karine resolveu casar-se e, como tudo para ela era fácil na vida, também dessa vez não teve dificuldade de encontrar um marido que atendesse às suas expectativas. Logo encontrou David, um economista como ela, com quem se casou.
Karine era uma mulher saudável assim como David, seu marido e, em menos de um ano, nasceu Karl, seu primeiro filho e, dois anos depois, veio Arthur, o segundo.
O parto de Arthur foi um pouco complicado e o médico que assistiu à jovem teve que fazer uma intervenção cirúrgica que a impossibilitaria de ter outros filhos.
Dessa forma, o casal Karine e David ficou com dois filhos. David estava feliz com o resultado, mas não Karine, ela queria uma menina.
O tempo foi passando e, alguns anos depois, ela começou a sonhar com uma menininha lourinha com os cabelos cacheados que lhe estendia a mão como quem estivesse pedindo ajuda. Ela sempre acordava angustiada com aquele sonho que, para ela, não fazia nenhum sentido.
Esse fato começou a se repetir com muita frequência e Karine resolveu contar ao marido que não viu nenhum problema e achou que a esposa estava tendo pesadelos em função do excesso de atividades, talvez, afinal, a moça trabalhava o dia inteiro na empresa e, como mãe e esposa dedicada que era, procurava adivinhar os desejos do marido e de seus dois filhos. De fato, a jornada de Karine era muito pesada, mas ela não reclamava disso. Acostumara-se desde cedo a perseguir com empenho os seus objetivos e ela tinha decidido que seria feliz no casamento fazendo com que, tanto seu marido como as crianças fossem, também, felizes. Faria a sua parte independente de qualquer coisa.
Realmente a moça era muito dedicada e incansável. Fazia questão de acompanhar os estudos das crianças procurando, sempre que possível, deixá-los ou apanhá-los na escola. Discutia os problemas do trabalho com o marido, já que ambos eram funcionários da mesma empresa e, ao que parecia, não havia nenhum problema com que se preocupar e, muito menos, que pudessem lhe provocar tantos “pesadelos”, como David tinha chamado os seus incômodos sonhos.
E a situação se repetia, cada vez mais amiúde. A menina hora aparecia chorando, hora aparecia muito triste e, sempre, estendia a mãozinha com quem pede amparo.
Essa situação já estava começando a mexer com a saúde de Karine até que, por sugestão, do próprio marido, resolveu procurar ajuda.
A princípio, procurou uma psicóloga muito bem recomendada pelos amigos mais íntimos. As sessões de análise prosseguiram meses a fio e a situação de Karine não mudava em nada. Os sonhos vinham, agora, quase todas as noites. A moça já não dormia direito. Algumas vezes acordava aos prantos e não sabia explicar porque chorava.
Resolveu abandonar as sessões de análise com a psicóloga e procurar um psiquiatra que lhe receitou calmantes e alguns medicamentos “tarja preta”, os ansiolíticos que, infelizmente, só fizeram piorar o estado clínico e mental da moça.
Ela já não sabia o que fazer. David via a sua vida familiar desmoronar e, se sentia impotente diante do quadro de ansiedade e tristeza da esposa que se agravava a cada dia.
Alguém lhe falou da teoria kardecista, o espiritismo.
Por que não tentar?
Afinal, a ciência não tinha resolvido a questão. O estado psíquico de sua esposa não melhorava, ao contrário, a situação estava ficando quase sem controle.
David conversou com a esposa e lhe explicou do que se tratava.
– Que bobagem é essa David? Imagina se eu vou acreditar em curandeirismo e outras coisas até piores!
– Não se trata de curandeirismo, meu amor, mas de uma religião que está se desenvolvendo há muitos anos. Muita gente busca ajuda ali e tem resolvido seus problemas. Vamos tentar, e, se você não gostar, nós simplesmente abandonamos. O que acha?
Com muita relutância, afinal, Karine concordou. Não tinha mesmo nada a perder, pensou ela.
Alguns dias depois, David chegou com a notícia de que tinha conseguido uma permissão para frequentar um Centro Espírita muito bem recomendado na cidade.
Karine concordou em ir.
A desconfiança era extrema no primeiro dia que o casal foi ao Centro Espírita. As pessoas recebiam-nos com extrema cordialidade procurando deixá-los à vontade, mas Karine não estava se sentindo bem. David, ao contrário, gostou do ambiente e procurava encorajar a esposa.
Uma senhora muito simpática recebeu-os e pediu-lhes que esperassem alguns minutos em uma pequena, porém confortável salinha onde havia algumas revistas sobre a doutrina espírita em uma mesinha de centro.
Karine, enquanto aguardava, pegou uma e começou a folhear. Passava as páginas quase que desapercebidamente quando o título de um artigo lhe chamou a atenção. Dizia: “Vínculos entre vidas”.
Sem nem mesmo saber porquê começou a ler o texto que se referia a pessoas que, em função de fatos ocorridos em vidas passadas, tem que se reencontrar nesta a fim de resolverem determinados assuntos que não foram muito bem equacionados em outras existências. Estava entrando na parte que falava de fatos que impediam que esses encontros se realizassem quando foi chamada para uma entrevista com alguém.
Em outra sala simples, porém confortavelmente mobiliada e com uma iluminação discreta, um senhor de cabelos grisalhos, atrás de uma escrivaninha, os esperava.
Procurou saber qual era o problema de Karine e ela lhe falou dos sonhos que, a princípio ocorriam espaçadamente, mas que, agora, aconteciam quase todas as noites. Falou-lhe da menininha loura que lhe estendia a mãozinha como que pedindo ajuda e do seu desespero ao acordar.
Thomas – este era o nome do entrevistador – de forma muito serena perguntou-lhe sobre o seu passado, como tinha sido a sua vida até então e quais os fatos mais importantes.
Karine narrou-lhe a sua trajetória contando minuciosamente a sua vida acadêmica – que era a parte de que ela mais gostava – mas omitiu os dois abortos. Na verdade, ela quase não se lembrava mais ou, talvez, não quisesse lembrá-los.
– Bem, disse Thomas, gostaria que vocês ficassem conosco, se quiserem, e participassem dos grupos de estudo que nós costumamos formar. Como esta é a primeira vez que vem a um Centro Espírita vou lhes sugerir que participem de uma turma de iniciantes.
– Claro! – Respondeu David bastante animado.
– Só uma coisa. – Disse Karine. Eu posso levar emprestada uma das revistas que eu vi sobre a mesinha da antessala?
– Claro, fique com ela.
Karine levou a revista para casa e, naquela mesma noite, terminou de ler o texto que a intrigou.
A parte final dizia o seguinte:
“As pessoas são colocadas em nossos caminhos de formas diversas, às vezes como um esposo ou como um irmão ou mesmo um amigo e ainda como um filho ou outras maneiras diversas e, se há algo que impeça que este encontro se realize, são provocadas profundas cicatrizes em nossa existência que terão reflexos por toda esta vida e, até, em existências futuras. Se o impedimento for causado por nós mesmos, de forma voluntária, a angústia daquele que foi impedido de nos encontrar vai se manifestar temporariamente, de forma repetida e inequívoca ainda nesta existência.”
Karine fechou os olhos e deixou que as grossas lágrimas que insistiam em sair lavassem o seu rosto deixando exposto todo o seu sentimento de culpa.
Agora ela sabia quem era a menininha loura que lhe estendia a mão.
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FALTOU UM BEIJO NO ROSTO.
Zé do Carmo era um jovem do interior que morava na cidade grande em uma casa de estudante. Era uma residência mantida pelo governo do estado para rapazes pobres que queriam se aventurar na capital para estudar e que não tinham condições de se manter.
Na casa faltava tudo. O desjejum era mirradinho. Somente café com pão e, uma vez ou outra um pouco de leite e manteiga, mas isso era muito raro.
O rapaz estava concluindo os estudos do segundo grau e preparava-se para o vestibular de Engenharia Civil, um sonho raro para os jovens da pequena Leviatã, cidadezinha de pouco mais de quinze mil habitantes onde, talvez, as únicas pessoas formadas fossem o padre e o delegado, que era chamado de doutor porque senão ele se ofendia.
Todos do lugarejo sabiam que Zé do Carmo, filho de Dona Benta e seu Carlito tinha ido pra capital pra estudar. Não sabiam bem o que, mas a grande maioria achava que ele iria voltar sem nem mesmo ter concluído o segundo grau, afinal, outros jovens já tinham se aventurado daquela forma e não tinha dado em nada.
Mas Zé do Carmo era diferente. Persistente e duro na queda, não entregava os pontos por causa de uma fomezinha qualquer. Lá na sua Leviatã ele nunca tinha passado fome, os pais eram pequenos agricultores, mas sempre tinha alguma coisa pra comer, nem que fosse um pouco de quiabo com jerimum cozido ou só um pouco de feijão mesmo, mas tinha.
Na cidade grande as coisas eram muito mais difíceis. Zé do Carmo fazia bico à noite, lavando carros na porta de um cinema grande, bonito, que havia lá perto da Casa do Estudante e era como ele conseguia algum dinheiro pra comprar algo pra comer, mas também, era o mais básico possível. Pelo menos um PF, como diziam, no almoço ou um pão com mortadela pro jantar. Mas havia dias mesmo que nem pra isso ele conseguia. Afinal ele tinha que estudar para o vestibular e, por isso, não dava pra ir todo dia trabalhar de flanelinha na porta do cinema. Havia também algumas pessoas que não pagavam nada e, não raro, o rapaz ia pra casa com fome porque guardava o pouco que tinha conseguido pra garantir o almoço do dia seguinte.
Mas tinha Ary Carlos e Lucinha que estudavam no mesmo colégio. Ele era o amigo do peito que gostava de Zé do Carmo porque ele era estudioso e sempre quebrava seu galho quando chegavam as vésperas das provas de Matemática e Física. Zé do Carmo era, disparado, o melhor aluno da turma em todas as matérias, especialmente nessas duas e Lucinha… bem, Lucinha era um sonho pra Zé do Carmo. Nutria por ela um amor platônico porque nem em sonho tinha coragem de se aproximar daquela menina faceira, cheirosa (ele sabia disso porque gostava de ficar por perto dela pra sentir seu cheiro) e, ainda por cima, estudiosa. Como ela se vestia bem, Zé do Carmo achava que ela era rica e, para poder chegar perto dela precisaria, no mínimo, ser aprovado no vestibular de engenharia. Aí, quem sabe, teria alguma chance?
Ary Carlos, sabendo da situação difícil de Zé do Carmo e, também, querendo puxar o saco do amigo, de vez em quando o convidava pra almoçar na casa dele, principalmente nos fins de semana. Ele morava num sítio, um pouco afastado, em uma bela casa, confortável, com muitas árvores frutíferas que Zé do Carmo aproveitava para encher a sacola nos domingos e levar pra Casa do Estudante, afinal, fruta para ele era um luxo. Ele gostava de jaca porque era grande e dava pra muitos dias, o único problema era que o cheiro da fruta chamava a atenção dos outros colegas de quarto e Zé do Carmo não se negava a dividir com eles, por isso, acabava logo.
Lucinha era muito bonita, cabelos castanhos, rostinho de boneca e usava uns óculos que lhe davam um charme muito especial. Zé do Carmo estava apaixonado pela menina.
Veio o exame de vestibular e, ao final, Zé do Carmo foi aprovado para Engenharia Civil, Ary foi reprovado para Direito e a bela e charmosa Lucinha conseguiu aprovação em Medicina. Que bela médica ela seria! Sonhava Zé do Carmo.
Na comemoração pela aprovação, Zé do Carmo ousou se aproximar de Lucinha e, timidamente, para cumprimentá-la, tentou dar-lhe um beijo no rosto, como fazem as pessoas normalmente.
Que decepção!
A menina virou o rosto e não permitiu que Zé do Carmo a beijasse. Não deu qualquer satisfação, simplesmente se afastou dali e foi conversar com outros amigos, “talvez do seu mesmo nível social” – pensou Zé do Carmo.
Aquilo foi um golpe rude para o rapaz, mas a alegria de ter sido aprovado no vestibular de Engenharia Civil era maior.
No dia seguinte, Zé do Carmo sacolejava em um ônibus velho com destino à sua pequena e querida Leviatã. Precisava contar pessoalmente para os pais porque, celular ele não tinha e, mesmo que tivesse, os pais não sabiam nem o que era isso.
Cinco anos se passaram e Zé do Carmo era agora um engenheiro civil. Tinha estagiado em uma empresa que construía grandes edifícios residenciais e, tão logo se formou, foi contratado.
Em pouco tempo o rapaz se firmou como um dos melhores engenheiros daquela cidade. Agora que ganhava bem, tinha dado uma casa confortável para os pais, lá em Leviatã mesmo, pois eles não queriam se mudar pra capital e já tinha comprado, também, um carro e um apartamento para si.
Mas faltava uma coisa: Lucinha. Onde ela estaria?
Os anos se passaram e Zé do Carmo finalmente se apaixonou por Cláudia, uma médica que comprara um apartamento em um dos prédios que a empresa onde trabalhava Zé do Carmo tinha construído e, no qual, ele trabalhara como engenheiro residente.
Zé do Carmo se casou com Cláudia e tiveram dois filhos: Ana Paula e Antônio Carlos (homenagem ao pai). A vida sorria para o casal e, em breve, tinham um belo patrimônio, uma vida organizada e desfrutavam de um excelente ambiente na sociedade local.
– Gostaria de convidar uma amiga para jantar conosco uma hora dessas. Disse Cláudia para Zé do Carmo.
– Claro, querida, fique à vontade. Quando você quiser. Eu conheço?
– É uma colega médica, que trabalha comigo lá no hospital. É uma ótima pessoa, mas, coitada, não tem dado sorte na vida conjugal. Acabou de se separar do segundo marido. Foi um casamento conturbado. Parece que o marido bebia muito e, dizem, chegou até a agredi-la. Não teve filhos em nenhum dos dois relacionamentos. Ela é mais ou menos da sua idade, uns trinta e cinco anos eu diria, mas, como eu disse, a vida foi dura para com ela e, hoje, ela aparenta ter bem mais.
– Que pena! Mas, como eu lhe disse, convide-a quando quiser.
De fato, no sábado seguinte, o casal se preparava para receber a convidada em casa para um jantar. Como a médica era muito amiga de sua esposa, Zé do Carmo tinha programado que jantaria com elas e as crianças e, depois, encontraria alguma coisa para distrair os meninos para deixa-las à vontade para conversarem. Afinal, pensava, sua esposa era uma pessoa bastante equilibrada e, se fossem conselhos que estivessem faltando à amiga, certamente Cláudia poderia dá-los.
Sábado, nove horas da noite, a campainha do belo apartamento de Cláudia e Zé do Carmo tocou.
Zé do Carmo distraía-se com as crianças com um vídeo game e, da sala de estar, não viu quem estava entrando.
– Querido quero lhe apresentar a minha amiga – disse Cláudia.
Zé do Carmo olhou para a visitante e, ao contrário do que ele mesmo poderia imaginar, não se emocionou, seu coração não acelerou, viu apenas uma pobre mulher, sofrida, maltratada pela vida com um olhar triste, o rosto levemente enrubescido porque o tinha reconhecido, que lhe disse:
– Muito prazer, Lúcia, e ofereceu-lhe o rosto para um beijo.
O CAÇADOR
Flaviano era famoso no Estado do Amapá. Caçador exímio, nunca voltava pra casa de mãos vazias. Veados, pacas, tatus, antas, jacarés, patos selvagens, qualquer bicho que quisesse ele matava com extrema perícia e facilidade.
Ele era tão bom no que fazia que aceitava encomendas. As pessoas lhe encomendavam caças específicas.
– Seu Flaviano, eu tô com vontade de comer uma paca neste fim de semana. Quanto é? – perguntava seu Alarico, o dono da taberna.
Flaviano dava o preço e Alarico já podia contar como certo o seu almoço de domingo: Paca na brasa.
Além disso, Flaviano era também um excelente pescador. Costumava aventurar-se pelo rio Amazonas e seus afluentes. Pescava grandes espécimes e, de vez em quando, tartarugas gigantes, algumas delas centenárias. Gostava de se deixar levar pelas águas do rio Amazonas até aonde ele achasse que era o ponto certo.
Homem prendado e corajoso, embrenhava-se na selva amazônica, quase sempre sozinho, algumas vezes a pé, outras na sua velha caminhonete ano 1981.
Não tinha medo de onça, sucuri ou qualquer outro animal selvagem da mata. Sabia preparar armadilhas e tocaias como ninguém e, além de tudo, atirava bem tanto com seu rifle quanto com sua carabina semiautomática. Possuía os mais modernos equipamentos de pesca. Usava varas, molinetes, redes, tarrafas. Tinha um feeling muito especial para escolher o equipamento adequado para cada local e situação.
Sua preferência, no entanto, era a caça. Sentia um enorme prazer em ver a presa abatida por um disparo certeiro. Possuía extrema habilidade para retirar os couros e tratá-los. Faturava um bom dinheiro com toda essa atividade. Afinal, isso era o que ele fazia na vida.
Ultimamente, Flaviano vinha adquirindo um prazer especial pela caça aos felinos. Não só porque o couro dos animais possuía um alto valor de mercado, mas também, pelo grande desafio que sentia quando tinha que caçar uma onça pintada, essa, em especial.
Era início do mês de março e as chuvas de verão no norte do Brasil eram intensas. Tão fortes que parecia que “alguém tinha derramado um baldo d’água lá de cima”. Essa expressão Flaviano gostava de usar, em tom de brincadeira, para justificar as pesadas chuvas que caíam na região naquela época.
Flaviano se preparava para mais uma caçada. Alguém lhe tinha encomendado um veado, mas ele ia aproveitar para caçar uma onça pintada cujos rastros ele tinha visto na semana passada.
Com aquela chuvarada toda que caía, tanto era fácil seguir os rastros dos bichos se os visse pouco depois de serem feitos como eram fáceis de serem perdidos na próxima chuva. O caçador, no entanto, era esperto e experiente. Não iria perder a oportunidade de abater aquele felino. Ele queria isso a qualquer custo.
De fato, em pouco tempo, o homem já estava com a sua encomenda pronta – tinha abatido um grande veado em poucas horas de caçada – e agora, tocaiava-se para esperar a onça pintada que certamente apareceria para beber água às margens de um igarapé.
O sujeito, habilmente, pendurou a carcaça do veado. Assim, o cheiro de sangue atrairia mais facilmente a sua presa.
Ele sabia exatamente onde e quando esperar e, em pouco tempo, o maior de todos os felinos da América do Sul apareceu. Só que ele, ou melhor, ela, não estava sozinha. Tratava-se de uma onça-fêmea que, acompanhada de seus três filhotes dirigia-se ao igarapé e, ao sentir o cheiro do sangue do veado, parou um segundo para avaliar onde estaria aquela provável presa.
Flaviano viu os filhotes. Contou-os. Percebeu que eram três. Constatou que não teriam mais que alguns poucos meses de idade e que, sozinhos, suas chances de sobrevivência eram mínimas no meio daquela selva. Mesmo assim, ele apertou o gatilho.
O animal tombou, imediatamente, com o certeiro tiro no olho esquerdo. Flaviano mirou ali para não estragar o couro.
O homem desceu da árvore e, mesmo com os três filhotes próximos ao corpo da mãe como quem chora e não acredita no que estava acontecendo, expulsou-os. Rapidamente tirou o couro do felino e abandonou a carcaça para os predadores. Armou uma tipoia e amarrou o corpo do veado. Antes de sumirem na mata os três filhotes pararam como que dizendo adeus a sua mãe e deram um último olhar, só que não em direção à mãe abatida, mas para Flaviano. O homem olhou e percebeu que eram um pequeno macho e duas fêmeas.
Em questão de segundos Flaviano já não se lembrava mais dos filhotes e do fato de que, matando a mãe, ele tinha quase que certamente matado os filhotes também. O que interessava naquele momento era o dinheiro que ele iria receber pelo produto de sua caçada e as estórias que teria para contar nos bares das esquinas da cidade.
O tempo passou e o caçador continuava com sua rotina de caça e pesca. Vivia feliz porque era respeitado pela comunidade. Era quase um herói.
Quatro anos mais tarde, novamente no mês de março, épocas das fortes chuvas, Flaviano se embrenhava na mata para mais uma caçada. Desta vez o objetivo eram animais pequenos: tatus, pacas, jabutis, etc. Tudo encomenda.
Mesmo um homem experiente como Flaviano, às vezes, comete erros, afinal, ninguém é perfeito e, devido ao intenso temporal que caía na selva, o homem não viu um buraco na trilha de pacas e enfiou o pé. A dor foi intensa e, além de quebrar o tornozelo, o caçador ficou com o pé direito preso em uma raiz, de tal forma que não conseguia tirar por mais esforço que fizesse. Passou uma noite inteira assim. Afinal, pensou, aquela chuva em breve passaria e ele facilmente acenderia uma fogueira mesmo sem poder se movimentar e, dessa forma, chamaria a atenção de alguém.
O dia amanheceu mas a chuva não amainou, pelo contrário, intensificou-se mais ainda. Parecia um dilúvio.
O tornozelo estava terrivelmente inchado. Se já era difícil e penoso soltar o pé, agora, com o inchaço, era, realmente, impossível.
O dia inteiro passou e a próxima noite também e a chuva não parava.
Com o nascer do terceiro dia, finalmente, o sol apareceu, mas ele não veio sozinho.
Calmamente, como quem não quer espantar a presa, três onças aproximaram-se de Flaviano. Eram um macho e duas fêmeas. Não fizeram nenhum barulho e, quando o caçador percebeu, os três animais estavam em sua frente. Começaram a rodeá-lo. Pareciam analisar a situação. Olhavam-no nos olhos até que o macho se aproximou e pareceu cheirá-lo. Sentiu o seu odor que, talvez, o lembrasse de fatos acontecidos há alguns anos.
As armas do caçador tinham escapado de suas mãos quando do acidente e da dor repentina e, agora, estavam em um ponto inalcançável por ele, por isso, o sujeito estava à mercê dos três felinos.
Os três animais sentaram-se à frente do caçador e apenas esperaram.
O homem estava apavorado. Seu tornozelo havia infeccionado. Ele sentia febre e começava a delirar. Os animais mantinham-se impassíveis como quem espera que alguma coisa aconteça.
De fato, três dias depois, as três onças pintadas retiraram-se calmamente, da mesma forma como chegaram.
Com o pé preso sob as raízes de uma gigantesca sumaúma havia um homem morto. Ele não tinha nenhum ferimento no corpo a não ser um tornozelo quebrado que infeccionara e provocara a morte por envenenamento da corrente sanguínea.
O ÚLTIMO APITO
O trem de Mutim para Vila Branca fazia o mesmo percurso há 45 anos. A velha locomotiva rangia de tudo quanto era jeito pra vencer a Serra do Urubu e, quando chegava ao topo, soltava o seu grito de vitória.
O apito da Maria Fumaça não apenas avisava que estava chegando. Também levava alegria de uma cidade para a outra. Quando voltava pra Mutim a coisa era muito mais fácil porque era ladeira abaixo e, bem, assim, tudo quanto era santo ajudava.
Bom mesmo era quando ela vinha fungando, ribanceira acima, soltando aquela fumaça que se via de longe e, vitoriosa, soltava o estridente apito avisando a população que estava chegando.
Trazia tudo quanto que era de bicho: cabrito, carneiro, galinha, pato e peru e produtos da roça como quiabos, macaxeira, jerimum, melancia, coco. Trazia jegue para Nhô Tico pra transportar carga pras minas de ouro da redondeza e gente, sempre vinha muita gente. Era gente pra vender, gente pra comprar, pra trabalhar, pra contratar, enfim, aquele trem trazia não só alegria para o povo de Vila Branca, trazia, também, o progresso e a confiança no futuro. Ele era tudo de bom para a população das duas cidades.
Seu Álvaro era o maquinista do comboio desde o primeiro apito. Todo mundo conhecia o velho de cabeça branca, bigode grosso de pontas empinadas e a bela cabeleira branca que reluzia ao sol. Não tinha um fio de cabelo preto. Eram todos brancos de sabedoria. O rosto, enrugado pelos setenta e cinco anos de vida e quarenta e cinco de felicidade conduzindo a sua locomotiva, traduzia satisfação pura e felicidade plena. Ele adorava aquele trabalho. Se existisse alguém que pudesse se dizer feliz, bem, esse alguém era o velho Álvaro, o maquinista.
Cabedela – era esse o nome estranho que o velho Álvaro tinha dado à sua querida Maria Fumaça. Ninguém sabia a razão de nome tão estranho, nem ele mesmo, mas era assim que todo mundo tratava a velha máquina. E ela parecia entender o carinho e o respeito que o povo daquelas duas cidades tinha por ela. Não reclamava de nada, tudo que queria era que não lhe deixassem faltar lenha pra queimar, afinal, era isso que lhe dava forças pra vencer a poderosa Serra do Urubu, tão majestosa quanto a velha Cabedela. As duas pareciam se respeitar.
A chegada na estação de Vila Branca ou de Mutim, não tinha diferença. Seu Álvaro puxava a cordinha do apito, botava um boné de comandante e ia, todo orgulhoso, vistoriar o desembarque de pessoas, coisas e animais. Terminado tudo aqui, enquanto uma nova carrada era colocada nos seis vagões do comboio ele se dirigia ao café da estação e tomava um pingado, café com leite, mais leite do que café dizia para Jonas, o atendente e proprietário do estabelecimento, na verdade, uma concessão mas que era mais dele do que do governo porque ele já estava ali desde não sei quando.
Seu Álvaro dizia pra todo mundo que queria morrer num momento desses, quando já tivesse descarregado o seu trem, despachado todo mundo e as pessoas estivessem se preparando para uma nova viagem. Seria a apoteose. Morreria ali, no meio do povo e nos braços de sua velha Cabedela, a Maria Fumaça querida que morava em seu coração há quarenta e cinco anos. Para ele, era inconcebível qualquer possibilidade de separação, em vida, daquela máquina velha, tão cansada e feliz quanto ele.
O velho Álvaro tinha um filho chamado Ananias que já trabalhava como “segundo-piloto” na velha Maria Fumaça. Tinha aprendido todo o ofício com seu pai, mas era consciente que só poderia assumir o controle de Cabedela quando o velho fechasse os olhos. Qualquer coisa diferente disso era totalmente impensável, fora de cogitação.
Mas aconteceu!
Inexplicavelmente, veio uma ordem da capital determinando que a linha férrea de Mutim para Vila Branca teria que parar, ou melhor, pra usar os termos bonitos do comunicado: seria descontinuada.
Foi preciso que o professor Lenir explicasse pro seu Álvaro o que significava “ser descontinuada”.
– Mas por quê? – perguntava o incrédulo Álvaro – se está todo mundo feliz. O povo todo gosta da Cabedela!
Ninguém conseguia explicar aquilo.
O fato é que, na segunda-feira, Cabidela parou de fungar e soltar a fumaça preta que de longe alegrava os corações dos mutinenses e dos vilabranquenses.
Mesmo assim, todos os dias, seu Álvaro ia até a estação de Vila Branca pra ver se a sua velha amiga estava “precisando de alguma coisa”. Voltava pra casa triste, cabisbaixo, mas, pelo menos, tinha o consolo de que, no dia seguinte, voltaria e conversaria mais alguns minutos com a sua Cabedela.
Isso também não durou muito.
Um dia, pela manhã, seu Álvaro encontrou Jonas, já de volta, mais triste do que tudo.
– Que foi que houve Jonas? Não vai abrir a lanchonete hoje?
– Vou não, Álvaro. Não posso.
– Não pode porque, sô. O que aconteceu?
– Trancaram o portão da estação com um cadeado deste tamanho, ó! – disse Jonas mostrando o tamanho de um cadeado enorme, desses bem antigos.
– Quem foi que fez essa maldade? – perguntou Álvaro.
– Disseram que foi um funcionário do governo, lá da capital que trancou e foi embora levando a chave com ele. Ele disse que tinha ordens pra fazer assim – explicou Jonas.
O coração do velho Álvaro acelerou e ele apertou o passo pra ver se aquela barbaridade era verdade mesmo.
O homem ficou no portão olhando a sua querida Cabedela, sozinha, abandonada, largada e tão triste quanto ele. Era verdade mesmo. Agora nem conversar com ela ele podia mais.
Álvaro voltou pra sua casa e Jonas resolveu ir embora dali. Ia montar outra lanchonete na estação rodoviária nova que estavam construindo numa cidade vizinha.
O velho Álvaro deixou de sair de casa e, como já era de se esperar, adoeceu. Adoeceu de tristeza, disse o doutor Prado, o único médico do lugar. Sugeriu que os familiares conversassem com ele e que procurassem um jeito de desviar sua atenção para outros assuntos. Mas como? Não havia outro assunto que interessasse ao velho maquinista. Ela só falava em sua Cabedela e o fim triste que deram à pobre coitada. Em nenhum momento se referia a si mesmo.
O filho, Ananias, estava preocupado com o estado de prostração do seu velho pai. Não havia nada que lhe desse alegria e o doutor Prado disse que se continuasse daquele jeito, qualquer hora dessas ele iria ter uma parada do coração.
Ananias não queria isso. Resolveu fazer uma viagem. Disse que iria até a capital pra resolver uns problemas, procurar um trabalho e outras coisas mais. Na verdade ele foi até a sede da Rede Ferroviária Federal fazer um pedido. Era um pedido simples.
Voltou dois dias depois e encontrou o seu velho pai ainda pior. Ananias percebeu que o homem estava dizendo adeus. A tristeza da separação brusca de sua Cabedela era forte demais.
Ananias saiu cedo de casa. Pediu a bênção ao seu velho pai e de sua velha mãe, dona Noca, e saiu.
Duas horas depois houve um movimento de gente na direção da estação de trem. Seu Álvaro já não tinha mais forças pra ir até a janela e por isso não viu a alegria estampada no rosto da população de Vila Branca.
A surpresa foi muito grande, da janela da casa da família de Álvaro dava pra ver a estrada de ferro e foi dali que Noca viu quando a velha Maria Fumaça passou e soltou o seu grito vitorioso, pela última vez, no comando, Ananias.
Dona Noca virou-se pra seu marido e, então, percebeu que ele já não respirava mais, mas seu rosto estampava uma fisionomia plácida, serena e plena de felicidade com um sorriso discreto em seus lábios.
Álvaro tinha ido embora, não sem antes ouvir a voz de sua maior amiga uma última vez. Foi embora, sim, mas foi feliz.
POR CINCO VAQUINHAS
– ÊÊÊÊ boi!
Este era o grito do vaqueiro Josivaldo, às cinco horas daquela manhã fria, enquanto tangia as suas cinco vacas em direção ao caminhão que esperava na frente de sua casinha de madeira. Toda branca, janelas vermelhas e, no peitoril de cada uma delas, um vasinho com algumas margaridas que Jacirema tinha plantado. Cuidava delas com muito carinho e elas correspondiam perfeitamente dada a beleza que apresentavam naquela manhã em que o sol nem tinha nascido direito. Na frente, uma cerca de tábuas brancas, impecavelmente alinhadas, todas da mesma altura, com um portão que dava acesso a um lar humilde, mas feliz.
O dinheiro da venda das vacas já tinha destino certo. Seria pra pagar o doutor que ia fazer o parto de Jacirema, que estava grávida de oito meses do primeiro filho do casal. Seu nome seria Carlos José porque Josivaldo achava bonito e porque ele poderia chamá-lo, carinhosamente, de Cazé, apelido de seu velho pai, vaqueiro como ele, mas que um boi malvado tinha mandado mais cedo para junto de Deus.
Um homem com um imenso chapéu de vaqueiro, alto, sujeito de quase dois metros de altura e um bigode de uns dois dedos de grossura, negros, que caía abaixo das bochechas, era o motorista do caminhão. Jacirema não gostava dele, na verdade, tinha medo dele, pois achava que o sujeito tinha cara de mau e tinha dito para Josivaldo não confiar no tal sujeito do caminhão e que recebesse o dinheiro das vacas adiantado. Seu nome era esquisito. Chamava-se Temístocles, mas era conhecido mesmo era como Temista, jeito caboclo de se pronunciar um nome tão complicado.
Josivaldo chegou ao caminhão tangendo as suas vacas.
– Vamo botar elas pra dentro – disse Temístocles. Ocê sobe lá e puxa as corda passada nos chifre e eu empurro de cá.
A operação consistia em fazer com que as vacas subissem ao caminhão por uma rampa de madeira que tinha sido colocada atrás, apoiada na carroceria do veículo velho.
Subiu a primeira, a segunda e era uma trabalheira danada, o sol já tinha aparecido finalmente e Josivaldo suava às bicas. Ele era um homem pequeno, pouco mais de um metro e sessenta, magrinho, mirradinho, sujeito bom que achava que todo mundo era bom como ele.
– Josivaldo, ocê sobe na boleia mais eu que nós vamos passar no comércio de “nhô” Tonho mode eu pegar o dinheiro pra pagar ocê – disse o bigodudo.
Aquilo não tinha sido o combinado. O acertado era que o sujeito pagaria as vacas, ali mesmo, na hora que elas entrassem no caminhão.
Josivaldo ficou sem ação. Olhou pra Jacirema que, da janela onde estava, não podia ouvir a conversa, mas o seu rosto estampava um ar de preocupação como quem está tendo um pressentimento.
– Muié – gritou Josivaldo – eu vou ali mais “seu” Temista mode pegar o dinheiro. É na casa de nhô Tonho. Vou num pé e “vorto” noutro.
Jacirema arregalou os olhos. Não era possível! Ela tinha tido um sonho ruim naquela noite e, não se lembrava direito do final, mas parecia que o seu Josivaldo saía de casa e não voltava mais. Mas Jacirema não podia fazer nada. Apenas acenou com a mão, triste, como quem se despede, e só pôde dizer: “Vorta logo, home”.
O dia foi passando, deu a hora do almoço e nada de Josivaldo voltar. Jacirema estava muito preocupada. O que poderia fazer? O bucho enorme de mulher prenha de oito meses provocava dores terríveis na coluna e, com os pés inchados daquele jeito ficava até difícil de caminhar.
Felizmente foi passando um rapaz de bicicleta. Todos os chamavam de Cadico. Era pouco mais do que um adolescente e, prestativo, todos do lugarejo gostavam dele. Tinha uma grande cicatriz na testa provocada por um tombo de bicicleta, num dia chuvoso.
– Cadico! – chamou Jacirema.
Cadico chegou, parou a bicicleta e perguntou:
– Que foi Dona Jacirema?
– Cadico, ocê me faz um favor?
– Mas é claro, dona Jacirema. O que é que a senhora quer?
– Quero que ocê vá na casa de nhô Tonho e pergunte pelo Josivaldo, meu marido, que saiu daqui pra lá, inda bem cedinho e num vortô até agora. Pergunta por ele por lá e vorta aqui mode me dar uma resposta.
– Pode deixar – respondeu o prestativo Cadico.
Não demorou nem quarenta minutos e Cadico já estava de volta.
Jacirema continuava na janela, com aquele ar aflito de quem sabe que alguma coisa não está indo bem.
– E então? – perguntou.
– Dona Jacirema, o seu Josivaldo num teve hoje lá não. Nhô Tonho disse que faz é dias que num vê ele.
Pronto! Isso foi o suficiente pra Jacirema se desesperar.
– Valei-me minha Nossa Senhora dos Remédios! Me acuda! O que terá acontecido com meu marido?
Jacirema e Josivaldo eram casados direitinho, tanto no civil quanto no católico. Religiosa, ela não tinha aceitado a proposta de ajuntamento que Josivaldo lhe tinha feito primeiro e disse que com ela, só casando. Foi o que aconteceu. Casaram na paróquia de Santa Gertrudes, que ficava ali mesmo, pertinho da casa de Jacirema e Josivaldo e quem celebrou a cerimônia foi o padre Augustinho, um sacerdote, já bem velhinho, cabeça completamente branca.
Foi dele que Jacirema se lembrou naquela hora de angústia. Pediu para Cadico levá-la na garupa da bicicleta até a casa paroquial. Iria pedir ajuda ao padre Augustinho.
Cadico concordou, mas foi só porque não sabia dizer não pra ninguém.
“Imagine, home! Levar uma muié já quase parindo na garupa de uma bicicleta!! Aquilo era perigoso demais – pensava o rapaz – mas acabou levando Jacirema na garupa até a casa do padre.
– Pois foi isso que aconteceu, “pade” Augustinho, e eu tô morrendo de preocupada. O que é que faço? – perguntou Jacirema ao sacerdote.
– Tá bom – disse o padre. Vamos até a delegacia.
O padre tinha uma camioneta velha que fumaçava mais do que andava. Por onde o veículo passava ficava o cheiro de óleo diesel queimado.
Quando chegaram na delegacia, estranharam o amontoado de gente que cercava o prédio. Alguma coisa tinha acontecido.
O delegado, doutor Sinfrônio José de Souza – homem importante no lugar – quando viu a mulher gestante chegar ficou preocupado. Todos desviavam a vista quando Jacirema buscava alguém para olhar nos olhos.
O delegado recebeu os três – Cadico tinha vindo junto, na carroceria da camioneta com a sua bicicleta – pediu que Jacirema sentasse um pouco, pra descansar, e levou o padre para um canto onde lhe contou o que tinha acontecido.
Logo ali, a uns três quilômetros da casa do casal, alguém encontrou o corpo de Josivaldo com um tiro no coração. Estava jogado na beira da estrada, ainda quente, pois tinha acabado de ser assassinado.
Agora tinham que dar a notícia à pobre mulher.
O delegado, mesmo sabendo que era sua obrigação fazer isso, estava com medo. O padre pediu que Cadico fosse buscar um médico. Ele foi, mas voltou dizendo que o doutor não podia vir pois “tava cuidando de uns doentes lá”.
Quem iria contar pra Jacirema?
Jacirema tinha entendido tudo e o destino decidiu poupar aqueles homens do desconforto de contar-lhe o que tinha acontecido.
A dor tinha sido tão grande que, quando os homens chegaram, encontraram a mulher com a cabeça jogada para trás, no velho banco de madeira, inerte, sem vida. O coração da jovem, machucado pelo barbeiro que provocou a doença de Chagas, não suportou a dor.
Uma voz se fez ouvir: “Temos que salvar a criança”.
Era Cadico, o mais improvável, o menos culto, mas era quem tinha um coração que não sabia dizer não e, ali, na barriga daquela mulher morta, poderia haver uma criança com vida.
– Vamos levar ela pro doutor. Talvez ele possa salvar o menino – disse, com extrema sabedoria, o jovem e bondoso Cadico.
Alguns anos depois, um homem, já com seus trinta anos, com uma grande cicatriz na testa, sentado em uma cadeira de balanço, à tardinha, responde a uma criança que, chegando da escola, lhe diz:
– Benção, pai!
– Deus te abençoe, meu filho Cazé!
UMA MORTE DIGNA
Madalena pousou seu novo avião na frente de sua casa. Era um modelo para duas pessoas, controlado por robô que voava a baixa altitude, apenas para pequenos percursos. Desceu rapidamente com Gabriel, seu filho de quinze anos, que, daquela vez não quis usar a sua própria aeronave preferindo pegar uma carona com a mãe na volta do treinamento de lutas marciais para economizar um pouco de combustível.
Era o ano de 2135 e a vida estava cada vez mais selvagem. Saber se defender era primordial para se manter vivo. Todos praticavam alguma luta para sua defesa pessoal porque, com a extinção da polícia, há cinquenta anos, a vida passou a ser cada um por si.
Tudo era difícil e racionado, especialmente água, comida e combustíveis. O governo usava todo o seu aparato de segurança pública apenas para defender as suas reservas de água e os frequentes ataques de nações clandestinas em busca desse produto fazia com que o mundo todo estivesse em guerra.
Nações foram criadas à revelia da extinta ONU – Organização das Nações Unidas – por absoluta inépcia daquele órgão no que dizia respeito à proteção e à promoção da distribuição de riquezas. A população mundial, por volta de 65 bilhões de habitantes, revoltara-se contra os governos e, agora, muitos países desrespeitavam as fronteiras e as nacionalidades e, simplesmente, invadiam qualquer nação em busca do que mais precisavam: água, comida e combustível.
Era comum verem-se pessoas com tremedeiras nas mãos devido à ingestão de carne humana. Isso era normal.
Qualquer animal poderia se transformar em uma bela refeição. Os gatos e cachorros, extintos há mais de setenta anos, eram os pratos favoritos nos anos 2060 e Madalena os conhecia apenas por fotos e ficava imaginando quão deliciosos deveriam ser aqueles animais assados ao forno ou cozidos em um belo molho de pimenta.
O pequeno avião manobrou sozinho e, após dobrar as asas, agasalhou-se na garagem da casa, ao lado daquele que pertencia a Gabriel. Era preciso estar a postos porque, a qualquer momento, seriam divulgadas as senhas para que as pessoas fossem aos postos de distribuição receber as suas pílulas de hidratação. Eram divulgadas pelos canais exclusivos de TV que cada residência possuía.
Madalena tinha sorte porque tinha conseguido comprar uma casa modular de doze metros quadrados que, com um simples toque no controle remoto se transformava no cômodo que os moradores estavam precisando no momento. E, agora, eles precisavam de uma confortável sala com sofá e TV, tudo embutido nas paredes, é claro, para os quais ela já tinha mandado uma mensagem via internet para que cada objeto estivesse pronto para as suas funções.
Bem a tempo!
Mal se sentaram no sofá e o sinal para que Gabriel usasse o seu receptor, codificador, fosse posicionado de tal modo que somente ele soubesse a sua senha. Nem mesmo a sua mãe poderia saber. Isso, se acontecesse, seria considerado crime de alta traição para com o governo cuja punição era uma só: pena de morte por injeção letal, extração de todos os órgãos importantes do corpo e o restante destinado às indústrias de preparação de enlatados.
A mesma coisa aconteceu com Madalena e, imediatamente, ambos dirigiram-se para os seus respectivos postos para receberem as suas pílulas. Ninguém sabia onde o outro recebia nem quanto recebia. Sabia-se apenas que, à medida que as pessoas iam envelhecendo, a porção de pílulas diminuía, justamente para que a vida não se prolongasse por muitos anos. O mundo não comportava mais idosos e o limite máximo para a existência de qualquer ser humano era trinta e cinco anos. Quando qualquer cidadão atingia essa idade ele se dirigia ao local conhecido como plataforma de extermínio onde o governo dava cabo de sua vida o destinando corretamente o corpo, ou seja, seria transformando-o em alimento.
Por isso, era comum as pessoas decidirem acabar com a própria existência próximo dessa idade porque, assim, poderiam escolher uma morte digna, sem sofrimento, no momento em que queriam e ao lado de quem quisessem. Qualquer farmácia vendia os kits de eutanásia. Não havia limites de idade para as pessoas comprarem, pelo contrário, o governo incentivava os cidadãos a tomarem aquela atitude cada vez mais jovens. Madalena já tinha comprado o seu e também incentivava Gabriel para que não se demorasse muito, até achava uma boa ideia os dois partirem juntos. Quem sabe, assim, o jovem sofreria menos com as condições cada vez piores de sobrevivência!
Gabriel voltava para sua casa com as valiosíssimas pílulas que tinha recebido. Desta vez fora contemplado com uma porção generosa que daria, pelo menos para os próximos dez dias.
Um fato raro!
Com certeza, Madalena não teria conseguido uma porção para mais do que quatro ou cinco dias, o que era comum na idade avançada em que ela já estava, trinta anos.
Dois homens interceptaram o jovem na rua. Queriam as pílulas. O que eles não sabiam era que Gabriel era especialista em vários tipos de lutas marciais e, apenas dois sujeitos, não eram páreo para ele.
Fingindo que iria entregar o precioso pacote aos homens, desferiu, com as próprias mãos, apenas dois golpes fulminantes que perfuraram os pescoços dos adversários causando-lhes morte imediata.
Por um momento Gabriel pensou em levar os dois corpos para sua casa, pois isto poderia significar vários dias de comida fresca, mas, assim, estaria cometendo um crime inafiançável e imprescritível punido com a pena de morte. Matar não era crime, mas ocultar os cadáveres, sim.
O rapaz deixou os dois infelizes ali mesmo e voltou para casa.
Ao chegar, notou que a residência estava em um profundo silêncio. O avião de sua mãe estava na garagem, ao lado do seu. A casa estava sob o formato de quartos de dormir e Gabriel decidiu bater na porta daquele que pertencia a sua mãe. Como ela não respondeu, ele apenas empurrou a porta que estava aberta. Em sua cama, Madalena jazia morta e, em suas mãos, havia um bilhete de despedida no qual ela dizia que estava cada vez mais difícil conseguir as pílulas e que, daquela vez, o governo lhe informara que ela receberia apenas uma a cada três dias o que seria insuficiente para lhe aplacar a sede, sendo assim, sabiamente, tomou a decisão de partir.
Gabriel leu o bilhete e achou que a mãe tomou a decisão correta. Aproximou das pupilas de sua mãe, agora já sem brilho o seu SK-4200, aparelho de comunicação de última geração. A imagem fornecia os dados como causa mortis, local do corpo, sexo e idade do cadáver, além da completa identificação, é claro e, dentro de cinco minutos, o avião-tumba do governo desceu, verticalmente, em frente à residência de Madalena para recolher o corpo e enviá-lo para as indústrias de processamento de carne.
A vida prosseguia para Gabriel, mas ele também não tinha vontade de ir muito longe.
VIDA DE CAMINHONEIRO
Três horas da manhã. Um caminhão corta as estradas do interior da Bahia. Ao volante, José Antônio, há mais de trinta horas sem dormir, precisa chegar ao seu destino para entregar a sua carga dentro do prazo previsto. Para isso, não há tempo para dormir.
As luzes contrárias focam em um caminhão a mais de cento e vinte Km/h. Agora já são seis horas e o movimento na estrada começa a aumentar. Terá que reduzir a velocidade, mas, felizmente, seu destino já está próximo.
O engarrafamento infernal nas proximidades das cidades de grande e médio porte são as únicas coisas que aborrecem José Antônio. Ele já está acostumado a ficar sem dormir, sem comer, a ser assaltado, a ter o caminhão quebrado devido ao péssimo estado de conservação de algumas estradas, mas, com os engarrafamentos, não. Esse é o seu grande tormento.
Finalmente, por volta das dez horas, o caminhão carregado de motores elétricos estaciona na porta da fábrica. José Antônio desce do veículo, apresenta os documentos ao porteiro e recebe a autorização para entrar. Agora falta pouco para ele poder dormir algumas horas, se tiver sono, porque ele tomou uma dose extra de “arrebites” para conseguir ficar “ligado”.
Terminou o descarregamento e José Antônio, finalmente, começa a sentir um pouco de cansaço. Já tem em mente o posto de gasolina onde ele poderá estacionar sua carreta, tomar um banho, comer alguma coisa, tomar uma ou duas pingas e, finalmente, tirar um bom sono.
O celular tocou.
– Alô!
– Zé? – pergunta uma voz do outro lado da linha.
– Ele mesmo. – responde uma voz cansada do lado de cá.
– Você já descarregou?
– Terminei agora mesmo.
– Você precisa vir agora pra cá porque o patrão tem uma carga pra você levar pro Rio Grande do Sul. E é urgente.
Sem pensar direito, José Antônio responde.
– Tô indo.
O motorista, usando de toda a sua perícia, conduz o gigante de aço para a periferia onde fica a central de cargas da empresa para a qual presta serviço. O caminhão é seu e ele firmou um contrato com aquela empresa para atendê-la o mais rápido possível. Pagam bem e pagam em dia. Não lhe cabe questionar prazos, percursos ou distâncias.
No caminho, tem que passar por vielas e curvas fechadas onde “é impossível” que um caminhão como aquele passe. Mas ele passa.
José Antônio já esqueceu que estava cansado.
Enquanto carregam o seu caminhão ele toma mais alguns comprimidos e, em pouco tempo já está pronto para retomar a estrada. Fome ele não sente há muito tempo.
Desta vez é uma carga de produtos semi-industrializados, polipropileno, que será usado como insumo em uma grande empresa química do sul do Brasil. A viagem será longa, mas, pra ele, já não faz diferença. São quase três mil quilômetros que são percorridos em pouco mais de trinta e três horas com dois motoristas. José Antônio terá que fazê-lo em vinte e cinco horas sozinho.
Os arrebites são o seu repouso, seu alimento e sua diversão. Com eles as estradas passam mais rápido, não se sente o tempo e não há cansaço. Sim, na vida de José Antônio, não há espaço para essas coisas, afinal, a prestação do caminhão é pesada e ele precisa pagar em dia além de manter a família que ele não vê há mais de quarenta dias.
Mais uma vez, as luzes das estradas passam por ele em uma velocidade intensa.
De fato, o motorista consegue vencer a distância no tempo recorde de vinte e quatro horas e trinta minutos, cronometrados. José Antônio só parou para abastecer o caminhão. O que importa é que a carga chegou a tempo e que ele, agora, com este pagamento, está quase completando o valor da prestação do veículo.
Mais uma vez a estória se repete e o celular de José Antônio toca de novo. Mais uma vez ele não consegue dizer não.
Passa no lugar de sempre, compra mais algumas pílulas para abastecer o seu estoque que já estava quase no fim e parte para mais uma viagem. Agora, terá que ir para o norte do Brasil, Belém do Pará.
Tratava-se de um carregamento de MDF, matéria prima para a indústria moveleira que já deveria ter chegado lá há três dias. O cliente já estava furioso, ameaçando processar a transportadora e, agora, cabia a José Antônio fazer o milagre de percorrer três mil, oitocentos e cinquenta e quatro quilômetros em, no máximo, trinta e duas horas. Humanamente impossível – disseram os companheiros – mas não para José Antônio. Afinal, depois daquela viagem, ele finalmente teria o dinheiro para pagar a prestação do caminhão, sobrariam uns trocados e poderia, enfim, ir para casa ver Maria José e os meninos e descansar uns dias.
Hamilton era um amigo de José Antônio de longas datas. Vendo que o companheiro estava em um péssimo estado, perguntou-lhe:
– Zé, faz quanto tempo que você não dorme?
– Não se preocupe, meu chapa, tô tomando os bichinhos que me garantem – disse José Antônio referindo-se aos arrebites.
– Não senhor – retrucou Hamilton. Você tá um caco e eu não vou deixar você partir para uma viagem doida como essa sem dormir. Aproveita que o posto tá silencioso e tira um cochilo.
Tanta foi a insistência do amigo que José Antônio resolveu atendê-lo. A cabine do caminhão, confortável, acomodou o velho caminhoneiro e toda a sua preocupação com o valor da prestação do veículo.
Só que José Antônio não conseguia dormir de tanto arrebite que ele tinha tomado. Estava completamente ligado.
Olhou para a carreta do amigo e viu que ele estava dormindo. Não teve dúvidas. Foi até o banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho e concordou que estava com ar de cansado mesmo, mas era só esta viagem e depois ele iria descansar.
Ligou o motor de seu caminhão e saiu de fininho. Em pouco tempo devorava as estradas do sul rumo ao norte.
Depois de mais de vinte horas dirigindo sem parar, em uma curva, uma outra carreta cruzou com ele em alta velocidade e com os faróis altos.
José Antônio ficou cego por um segundo e foi o suficiente para ele sair da estrada. Ninguém saberia dizer quantas vezes o caminhão capotou, o fato era que, finalmente, após dias e dias dirigindo sem comer e sem dormir, José Antônio, finalmente, adormeceu.
FLOR DE LÓTUS
Aldo conheceu Emília na Faculdade. Ambos cursavam Física Nuclear em uma grande universidade e se destacavam entre os demais alunos. Costumavam estudar juntos, passear juntos, etc. Eram dois grandes amigos. Na verdade, nenhum dos dois jamais quis qualquer coisa com o outro além da amizade. Respeitavam-se mutuamente tanto por suas inteligências, quanto pelo caráter. Ambos tinham opiniões coincidentes em muitos aspectos, exceto um: Aldo não acreditava na mínima possibilidade de existência de vida extraterrestre, enquanto Emília pensava exatamente o contrário. Nunca chegaram a discutir seriamente por isso, mas sempre que conversavam a respeito gerava-se um pequeno mal estar entre ambos.
Aldo até evitava tocar no tema, mas, curiosamente, este era um dos assuntos preferidos por Emília. Sabia tudo sobre OVNI’s, UFOLOGIA, aparições suspeitas no céu, áreas militares secretas, testes que não eram divulgados, enfim, qualquer assunto a respeito de vida extraterrestre interessava à moça.
Após mais um dia de aula, sentados à sombra de uma árvore no Campus Universitário, Emília puxou novamente o assunto.
– Estive lendo um artigo em uma conceituada revista científica que garante que existem seres de outros planetas, que eles estão entre nós há centenas de anos estudando nosso comportamento, nossas fraquezas e pontos fortes – disse Emília.
– Eu gostaria de saber como é que esses pseudocientistas sabem essas coisas. Todas as teorias que foram levantadas até agora não tiveram qualquer comprovação – retrucou Aldo.
– Pois saiba que esse artigo a que me refiro afirma, também, que eles têm poderes que nós consideramos sobrenaturais.
– Ora, Emília, não vá querer me dizer que eles voam, são imortais ou coisas do gênero – falou com total desconfiança o jovem cientista.
– Pois uma das coisas que o autor do artigo afirma é que eles se quiserem, e quando quiserem, podem vencer a força da gravidade e superar fenômenos como descargas elétricas, levantar pesadas cargas, etc.
– Bem. Já vi que sobre este assunto nós não vamos chegar nunca a lugar nenhum. Que tal falarmos de seus planos após a formatura? – perguntou Aldo encerrando o assunto.
Estavam prestes a concluírem o curso de Física Nuclear e todos os formandos já tinham destino certo. As maiores empresas de energia nuclear, ou Governos de Nações consideradas desenvolvidas, enfim, todas as grandes corporações da área nuclear em todo o planeta tinham interesses naqueles jovens.
Aldo e Emília, afinal, iriam se separar. Ele iria para um projeto de construção dos mais modernos submarinos por propulsão nuclear e ela fora contratada por um grande Instituto de Pesquisa Nuclear, ambos em países diferentes.
Eram os últimos dias de aula e os jovens formandos organizavam festas de despedidas e o grande evento que seria a formatura.
No baile de formatura, Emília, uma loura de olhos verdes da cor de esmeralda, destacava-se por sua beleza e elegância. Usava um vestido longo, preto e irradiava alegria por onde passava contaminando a todos.
Dançava com o seu par preferido, seu amigo Aldo, chamando a atenção de todos. Muitos achavam que os dois nutriam um namoro às escondidas o que não era verdade. No começo Aldo até tentou iniciar um romance com a jovem, mas foi educadamente repelido. Todos os rapazes da turma tentaram, mas nenhum obteve êxito.
Naquela noite, Emília deu-lhe um presente de despedida. Era uma peça em ouro que representava a metade de uma flor de lótus branca e explicou-lhe que era uma flor aquática que, em alguns países, significava o nascimento divino, o crescimento espiritual e a pureza do coração e da mente e que, no momento oportuno ela lhe daria a outra metade. A branca, em especial, significava o espírito, a mente e a pureza.
O tempo passou, os amigos se despediram e cada um seguiu o seu destino. Aldo e Emília já não se viam mais, exceto pelos canais de comunicação via internet. Falavam-se todos os dias.
Aldo já era muito conceituado na empresa em que trabalhava e, em breve, lançaria ao mar, um novo submarino por cujo projeto ele era um dos responsáveis.
Tratava-se de uma maravilhosa máquina de guerra. Todos a consideravam perfeita, com autonomia praticamente infinita, alcance de suas armas jamais atingido por nenhuma outra embarcação, enfim, era quase a perfeição.
Chegou o dia de lançamento ao mar e Aldo estava a bordo de sua criação. Sentia-se extremamente orgulhoso e feliz.
O equipamento mergulhou e dirigiu-se às profundezas do oceano. Mergulhado nas gélidas águas do pacífico o submarino parecia absoluto. Incrivelmente silencioso, espaçoso e confortável, abrigava também uma carga mortífera com as mais modernas armas de guerra já concebidas pelo homem.
Em um dado momento, no entanto, o impensável aconteceu. Uma explosão sacudiu a embarcação de ponta a ponta e, em poucos minutos a tripulação estava à deriva, ao sabor do oceano. O oxigênio em breve acabaria e o risco de contaminação por radiação pelo urânio combustível era iminente.
Parecia que estavam todos condenados à morte certa.
A falta de oxigênio fez com que todos a bordo desmaiassem. A morte aconteceria em questão de minutos. Repentinamente, algo aconteceu. A embarcação, totalmente sem comando, começou a flutuar e, quando chegou à superfície a escotilha se abriu. Um vulto adentrou a embarcação e verificou que todos ainda estavam vivos. Tomou as providências técnicas para isolar a radiação e, aproximando-se de Aldo, depositou em sua mão a metade de uma flor de lótus branca, em ouro.
Dentro de alguns minutos os tripulantes começaram a despertar e a se dirigirem para o exterior. Aldo, ainda atordoado, retirou do bolso a outra metade da flor de lótus e viu que se encaixava perfeitamente com a que encontrou em sua mão quando despertou. Algo no céu lhe chamou a atenção. Um objeto grande, brilhando intensamente e que pairava sobre as suas cabeças, resplandecia no céu daquela tarde, quase noite. Deu umas voltas sobre o submarino e sua assustada tripulação e partiu, repentinamente, a uma velocidade jamais vista por qualquer habitante da terra.
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A SALVAÇÃO
Eduardo Andrada era um próspero homem de negócios. Tinha um faro aguçado para a bolsa de valores e investia muito forte. Nunca perdia.
Ao contrário do que lhe recomendavam os especialistas, ele não acreditava “nessa estória de diversificar os investimentos”.
– Sou bom é na Bolsa de Valores! Sei quando uma ação vai subir ou vai cair! Sinto no ar. – Gabava-se o investidor.
De fato, o homem já acumulava uma riqueza considerável conseguida toda nesse tipo de aplicações. Os amigos costumavam consultá-lo para saber se valia a pena investir em empresa A ou B.
Eduardo não se fazia de rogado e orientava a todos. Era, sob esse aspecto, um homem bom, não queria só para si. Principalmente porque, perto do que ele investia, o investimento dos outros era uma ninharia.
Eduardo era casado com Dona Maria Gorete, uma mulher muito religiosa, devota de Nossa Senhora das Dores e não faltava uma missa aos domingos. Levava sempre o marido e os dois filhos Antônio José e Maria das Graças. Na verdade, o marido ia somente para acompanhar a esposa por quem tinha verdadeira adoração. Amava a família mais do que tudo no mundo.
Maria Gorete tinha dado a Eduardo uma medalha com a imagem de Nossa Senhora das Dores e pedido ao marido que jamais a tirasse do pescoço. A imagem era feita em aço puro, tinha cerca de dois centímetros de diâmetro, era bem pesada, fora abençoada pelo bispo local e a mulher acreditava verdadeiramente no poder que ela teria.
Eduardo não acreditava naquilo, mas, para não contrariar a esposa, decidiu usá-la.
Procurava dar sempre o melhor que podia à esposa e aos filhos. Passeios maravilhosos, roupas sempre da última moda, embora Maria Gorete não fizesse tanta questão disso. Os filhos estudavam nos melhores colégios da cidade e, naqueles dias do ano de 1929, não era qualquer família que tinha um carro. Eduardo tinha dois.
O jovem investidor, milionário, não tinha do que reclamar, afinal, tinha uma mulher bonita e que o amava muito. Dois filhos maravilhosos, estudiosos e obedientes que só lhe davam orgulho. A vida estava voando em nuvens brandas, céu de brigadeiro.
Então, sem que ninguém esperasse, veio o CRASH. A bolsa de Nova York quebrou e arrastou para a miséria milhares de pessoas.
O mundo todo se viu, repentinamente, perdido. Nada do que se esperava dos negócios se concretizou. Nem mesmo Eduardo, com seu faro inigualável, infalível até então, escapou.
Em vinte e quatro horas a fortuna do homem virou fumaça.
Em todos os lugares havia casos de suicídio. Os antigos ricos não suportavam o fato de que tinham virado pobres de uma hora para outra.
Eduardo teve que se desfazer dos carros, da bela casa em que moravam, tirou os filhos do colégio caríssimo em que estudavam e, mesmo assim, não tinha dinheiro pra mais nada.
Estava perdido, não havia salvação! – Pensava o ex- investidor.
– O que é que eu vou fazer da minha vida? – Dizia para si mesmo.
Resolveu procurar os amigos que o procuravam nos velhos e bons tempos. Afinal sempre dera bons conselhos a todos, ajudou todo mundo nas decisões. Certamente, agora que ele precisava, não iriam lhe faltar.
O primeiro que ele procurou foi Hamilton, um empresário que, ao contrário de Eduardo, sempre procurou diversificar os investimentos. Tinha uma fábrica de sapatos, de médio porte e perdera muito dinheiro na bolsa, mas, sobrara-lhe a própria fábrica que, agora, permitia que ele sobrevivesse mais modestamente, é claro, mas dava para levar a vida sem desespero.
Hamilton não quis nem mesmo conversar com Eduardo.
Procurou André, um fazendeiro que procurava Eduardo com muita frequência em busca de seus conselhos e… nada. Ele também não podia fazer nada por ele.
Um após os outros os antigos amigos foram se afastando e, agora, desesperado, Eduardo não tinha outra opção na vida a não ser … tirar a própria vida.
Não suportava chegar em casa e ver o outrora alegre e rico ambiente familiar transformado em um ambiente de tristeza e desesperança e a culpa, achava, era unicamente dele.
Por que ele não investiu em outras coisas. Poderia ter sido fazendeiro como André ou ter alguma fábrica como Hamilton, talvez uma rede de farmácias, mas, não, ele achava que o mundo dos negócios era apenas a Bolsa de Valores e, agora, não tinha mais nada na vida a não ser dívidas, dor e a tristeza de ver que o seu mundo virou fumaça de uma hora para outra.
Estava em casa sozinho. Na gaveta um revolver calibre 38. Um tiro seria o suficiente para acabar com todos os seus problemas. Duraria apenas um segundo. Talvez nem sentisse dor.
Naquele momento ele não pensava mais na esposa, nem nos filhos nem no trauma que o seu gesto tresloucado provocaria na família. Tudo o que ele queria era desaparecer. O mundo não lhe interessava mais.
Apontou o revólver para o peito e disparou. O homem caiu ao lado da escrivaninha onde ele guardava a arma fatídica.
Mais tarde, Maria Gorete chegou com as crianças. Tinha ido apanhá-las no colégio público onde, agora, estudavam. Estava radiante porque tinha recebido uma notícia maravilhosa e estava ansiosa para dividi-la com o marido.
Chamou-o e, como não respondesse, resolveu entrar no pequeno escritório onde o marido costumava se refugiar ultimamente.
Encontrou-o desfalecido, mas ainda estava vivo.
Imediatamente chamou uma ambulância que o transportou para o hospital.
Eduardo escapou milagrosamente. A bala disparada contra o seu peito atingiu em cheio a forte medalha de Nossas Senhoras das Dores com a qual esposa o tinha presenteado. O homem desmaiou com o impacto sobre o coração, mas a bala ricocheteou e cravou-se na parede do escritório.
Após algumas horas, finalmente, Eduardo pode receber visitas, mas estava profundamente deprimido. Não queria mais viver.
– Eduardo, querido, tenho uma grande notícia para lhe dar – disse-lhe a esposa
Eduardo apenas olhou para a mulher, sem acreditar que ela tivesse alguma novidade que fosse capaz de alterar a situação de penúria em que viviam.
– Sabe aquele meu tio-avô, solteiro que mora em Minas Gerais?
Eduardo balançou a cabeça afirmativamente.
– Lamentavelmente ele faleceu mas deixou a fazenda com milhares de cabeças de gado para nós.
Eduardo olhou para a escrivaninha ao lado da cama, estendeu a mão, pegou a medalha de N. S. das Dores bastante amassada pelo disparo, levou-a à boca e deu-lhe um beijo.
Olhou para a esposa e não teve vergonha que ela visse duas grossas lágrimas que desciam pelo seu rosto.
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UMA FOTO EM PRETO E BRANCO
Era o ano de 1980.
Na faculdade de medicina de uma cidade do norte do Brasil dois jovens se encontram.
A afinidade entre os dois é muito grande e, logo começa uma amizade que em pouco tempo se transforma em algo muito mais profundo, mais sério e que prometia ser eterno. Quem os visse, certamente diria que aqueles dois vieram ao mundo para se completarem.
Naquela época, os recursos de fotografia eram parcos e só se poderia saber que uma foto tinha ficado boa quando se a revelasse. A jovem, que se chamava Isaura, presenteou o namorado com uma foto em branco preto, tamanho 5 x 7, em que se destacava o seu belo e simples rosto de menina pobre, sem maquiagem. No verso ela pedia ao jovem, que se chamava Olavo, que a guardasse porque enquanto a mantivesse consigo, ela o acompanharia onde quer que ambos estivessem.
Era uma jura de amor eterno.
A jovem Isaura gostava de presentear o namorado com balas de hortelã, um presente barato, comprado em qualquer esquina, mas que se tornara sua marca registrada. Sempre que o rapaz conseguia uma vitória, fosse uma boa nota em uma prova, a aprovação no fim do ano, enfim, nos grandes e pequenos acontecimentos, Isaura o presenteava com balas de hortelã.
Filhos de pais de classe média baixa, moradores de um bairro pobre, perceberam a necessidade de se ajudarem mutuamente e o amor que brotou entre os dois levou-os ao altar.
Tão logo se formaram em medicina, profissão que ambos, coincidentemente, almejavam desde a infância, casaram-se e resolveram praticá-la em uma das muitas cidades pobres do interior do norte do Brasil.
A união deu-lhes um filho, cujo nome, o pai, orgulhosamente, já tinha escolhido há muitos anos no qual tinha todo o apoio de sua Isaura. O menino deveria chamar-se Elias. Era algo pessoal, do pai.
As coisas, no entanto, não saíram como os jovens previram. O menino Elias nasceu prematuramente, com apenas seis meses de gestação e Isaura teve imensas complicações no parto vindo a falecer.
Antes de morrer, no entanto, pediu ao marido que cuidasse do menino com todo o amor que ele pudesse ter na vida.
Olavo viu-se, então, aos vinte e oito anos, viúvo com um filho prematuro de seis meses que precisava de cuidados médicos intensos, morando em uma cidade do interior. Não via outra alternativa senão esperar que o menino adquirisse as condições mínimas de sobrevivência para voltar para a sua cidade onde poderia ter ajuda de seus parentes.
Naquele tempo os pais do jovem médico já tinham morrido e as coisas estavam muito mais difíceis.
Era preciso transpor muitos obstáculos.
Apesar de todos os percalços o menino crescia com saúde e desenvoltura.
Em um certo momento, Olavo achou que deveria casar-se novamente. Afinal, um homem precisa de uma mulher, pensava.
De fato, casou-se com Samara achando que, finalmente, poderia construir uma nova família e dar uma segunda mãe a seu Elias.
Ledo engano!
Samara não gostava do menino e o maltratava aos olhos de todos com espancamentos e agressões verbais.
A situação piorou mais ainda quando vieram os filhos do novo casal. O pai não sabia o que fazer diante de tal situação, mas tinha prometido a Isaura que cuidaria do filho em todos os momentos de sua vida.
Secretamente, quando se sentia só e deprimido, chateado com a situação em que se encontrava o menino, olhava a foto da jovem Isaura e as suas forças e esperanças se renovavam.
O menino cresceu e, agora, rapaz, decidiu seguir a mesma profissão do pai. Tornara-se médico obstetra. Tinha decidido ajudar as crianças a virem ao mundo de forma humana e confortável e encarava como um verdadeiro desafio quando uma delas nascia de forma prematura.
Conhecia toda a sua estória e via-se naquelas crianças que sequer podiam pedir-lhe ajuda. Não precisavam fazê-lo, pois ele estava ali para isso.
Finalmente, Olavo conseguiu ter a paz com que sempre sonhara ao ver o filho bem-sucedido na vida, mas o destino sempre guarda surpresas para todos.
Uma noite, ao sair de um hospital onde tinha ajudado uma menina a nascer, o jovem Elias dirigia seu carro por uma avenida movimentada da cidade. Era sábado e muitos jovens estavam saindo das baladas, quando um automóvel, dirigido por um rapaz completamente embriagado, atingiu, em cheio, o carro do jovem médico.
Às cinco horas da manhã Olavo atendeu o telefone. O hospital avisava-o que o estado clínico do seu filho era crítico. Era preciso submetê-lo a uma delicada cirurgia para retirar um coágulo do cérebro e não havia um neurocirurgião disponível.
Olavo não pensou duas vezes e se dirigiu ao hospital o mais rápido que pode.
Médico conhecido na cidade, também obstetra como o filho, foi recebido pelos colegas que atenderam a Elias. Lamentavelmente nada poderiam fazer, pois nenhum deles, não sendo neurocirurgiões, se arriscaria a uma cirurgia tão delicada.
– Eu faço. – Disse o Olavo. Vamos cuidar disso imediatamente.
É fato que os médicos não gostam de atender os seus parentes próximos, mas, naquele momento, Olavo não pensou em outra coisa a não ser salvar a vida de seu filho.
O estado clínico do rapaz, apesar de alguns ossos fraturados inspirava cuidados apenas pelo coágulo que se formara no cérebro. Era imperativo retirá-lo imediatamente.
Os demais médicos entenderam que ali, muito mais do que um médico reconhecidamente brilhante, estava um pai disposto a tudo para salvar a vida de seu filho.
Doze horas de cirurgia. Todos estavam cansados. O Dr. Olavo, que jamais fizera uma intervenção como aquela, estava exausto, mas a cirurgia tivera êxito.
Estava consciente de que o filho estava fora de perigo, então, retirou-se para seu consultório e, sozinho, retirou o retrato de sua Isaura da gaveta, olhou-o intensamente, e chorou.
Após algum tempo, já recuperado, decidiu descansar um pouco. O médico adormeceu ali mesmo, e, após algumas horas, acordou.
Lembrou-se de tudo que tinha ocorrido e já se preparava para visitar o filho que estava na UTI quando reparou em um pequeno pacote que estava sobre a mesa.
Curioso, abriu-o e viu que havia, ali, algumas balas de hortelã.
KARINE
Karine engravidou aos dezoito anos.
Moça de classe média alta, bastante esclarecida, entendeu que, naquela idade, a gravidez iria atrapalhar seriamente os seus planos de se formar em economia, fazer um mestrado no exterior e conseguir um bom emprego em uma multinacional. Dessa forma, a moça não teve dúvidas e, sem sequer dar conhecimento aos seus pais, procurou um meio de abortar, o que conseguiu com relativa facilidade.
De fato, a vida prosseguiu de acordo com os planos traçados pela jovem e, aos vinte e cinco anos, já estava concluindo um mestrado em economia em uma grande universidade no exterior.
Foi aí que ela conheceu Robert, um jovem economista, mestrando como ela. Entre os dois desenvolvia-se uma química muito boa e, logo, começaram um relacionamento que culminou com a segunda gravidez de Karine.
Mas isso ainda não estava nos planos da jovem e, novamente, ela deu um jeito de provocar o aborto. Desta vez, porém, ela demorou um pouco mais e já dava até para saber o sexo do bebê: seria uma menina. Isso não foi obstáculo para Karine que levou seu plano até o fim.
De volta ao país, a jovem e preparada economista não teve dificuldades para conseguir um excelente emprego com fortes possibilidades de uma transferência para o exterior. E ela, em pouco tempo, conseguiu isso.
Karine era uma moça de muitos amores. Bonita, inteligente, socialmente bem posicionada, excelente condição financeira, não tinha nenhuma dificuldade nessa área, além disso, a sua vida profissional progredia a olhos vistos. O sucesso era companheiro frequente da bela jovem.
Um belo dia, Karine resolveu casar-se e, como tudo para ela era fácil na vida, também dessa vez não teve dificuldade de encontrar um marido que atendesse às suas expectativas. Logo encontrou David, um economista como ela, com quem se casou.
Karine era uma mulher saudável assim como David, seu marido e, em menos de um ano, nasceu Karl, seu primeiro filho e, dois anos depois, veio Arthur, o segundo.
O parto de Arthur foi um pouco complicado e o médico que assistiu à jovem teve que fazer uma intervenção cirúrgica que a impossibilitaria de ter outros filhos.
Dessa forma, o casal Karine e David ficou com dois filhos. David estava feliz com o resultado, mas não Karine, ela queria uma menina.
O tempo foi passando e, alguns anos depois, ela começou a sonhar com uma menininha lourinha com os cabelos cacheados que lhe estendia a mão como quem estivesse pedindo ajuda. Ela sempre acordava angustiada com aquele sonho que, para ela, não fazia nenhum sentido.
Esse fato começou a se repetir com muita frequência e Karine resolveu contar ao marido que não viu nenhum problema e achou que a esposa estava tendo pesadelos em função do excesso de atividades, talvez, afinal, a moça trabalhava o dia inteiro na empresa e, como mãe e esposa dedicada que era, procurava adivinhar os desejos do marido e de seus dois filhos. De fato, a jornada de Karine era muito pesada, mas ela não reclamava disso. Acostumara-se desde cedo a perseguir com empenho os seus objetivos e ela tinha decidido que seria feliz no casamento fazendo com que, tanto seu marido como as crianças fossem, também, felizes. Faria a sua parte independente de qualquer coisa.
Realmente a moça era muito dedicada e incansável. Fazia questão de acompanhar os estudos das crianças procurando, sempre que possível, deixá-los ou apanhá-los na escola. Discutia os problemas do trabalho com o marido, já que ambos eram funcionários da mesma empresa e, ao que parecia, não havia nenhum problema com que se preocupar e, muito menos, que pudessem lhe provocar tantos “pesadelos”, como David tinha chamado os seus incômodos sonhos.
E a situação se repetia, cada vez mais amiúde. A menina hora aparecia chorando, hora aparecia muito triste e, sempre, estendia a mãozinha com quem pede amparo.
Essa situação já estava começando a mexer com a saúde de Karine até que, por sugestão, do próprio marido, resolveu procurar ajuda.
A princípio, procurou uma psicóloga muito bem recomendada pelos amigos mais íntimos. As sessões de análise prosseguiram meses a fio e a situação de Karine não mudava em nada. Os sonhos vinham, agora, quase todas as noites. A moça já não dormia direito. Algumas vezes acordava aos prantos e não sabia explicar porque chorava.
Resolveu abandonar as sessões de análise com a psicóloga e procurar um psiquiatra que lhe receitou calmantes e alguns medicamentos “tarja preta”, os ansiolíticos que, infelizmente, só fizeram piorar o estado clínico e mental da moça.
Ela já não sabia o que fazer. David via a sua vida familiar desmoronar e, se sentia impotente diante do quadro de ansiedade e tristeza da esposa que se agravava a cada dia.
Alguém lhe falou da teoria kardecista, o espiritismo.
Por que não tentar?
Afinal, a ciência não tinha resolvido a questão. O estado psíquico de sua esposa não melhorava, ao contrário, a situação estava ficando quase sem controle.
David conversou com a esposa e lhe explicou do que se tratava.
– Que bobagem é essa David? Imagina se eu vou acreditar em curandeirismo e outras coisas até piores!
– Não se trata de curandeirismo, meu amor, mas de uma religião que está se desenvolvendo há muitos anos. Muita gente busca ajuda ali e tem resolvido seus problemas. Vamos tentar, e, se você não gostar, nós simplesmente abandonamos. O que acha?
Com muita relutância, afinal, Karine concordou. Não tinha mesmo nada a perder, pensou ela.
Alguns dias depois, David chegou com a notícia de que tinha conseguido uma permissão para frequentar um Centro Espírita muito bem recomendado na cidade.
Karine concordou em ir.
A desconfiança era extrema no primeiro dia que o casal foi ao Centro Espírita. As pessoas recebiam-nos com extrema cordialidade procurando deixá-los à vontade, mas Karine não estava se sentindo bem. David, ao contrário, gostou do ambiente e procurava encorajar a esposa.
Uma senhora muito simpática recebeu-os e pediu-lhes que esperassem alguns minutos em uma pequena, porém confortável salinha onde havia algumas revistas sobre a doutrina espírita em uma mesinha de centro.
Karine, enquanto aguardava, pegou uma e começou a folhear. Passava as páginas quase que desapercebidamente quando o título de um artigo lhe chamou a atenção. Dizia: “Vínculos entre vidas”.
Sem nem mesmo saber porquê começou a ler o texto que se referia a pessoas que, em função de fatos ocorridos em vidas passadas, tem que se reencontrar nesta a fim de resolverem determinados assuntos que não foram muito bem equacionados em outras existências. Estava entrando na parte que falava de fatos que impediam que esses encontros se realizassem quando foi chamada para uma entrevista com alguém.
Em outra sala simples, porém confortavelmente mobiliada e com uma iluminação discreta, um senhor de cabelos grisalhos, atrás de uma escrivaninha, os esperava.
Procurou saber qual era o problema de Karine e ela lhe falou dos sonhos que, a princípio ocorriam espaçadamente, mas que, agora, aconteciam quase todas as noites. Falou-lhe da menininha loura que lhe estendia a mãozinha como que pedindo ajuda e do seu desespero ao acordar.
Thomas – este era o nome do entrevistador – de forma muito serena perguntou-lhe sobre o seu passado, como tinha sido a sua vida até então e quais os fatos mais importantes.
Karine narrou-lhe a sua trajetória contando minuciosamente a sua vida acadêmica – que era a parte de que ela mais gostava – mas omitiu os dois abortos. Na verdade, ela quase não se lembrava mais ou, talvez, não quisesse lembrá-los.
– Bem, disse Thomas, gostaria que vocês ficassem conosco, se quiserem, e participassem dos grupos de estudo que nós costumamos formar. Como esta é a primeira vez que vem a um Centro Espírita vou lhes sugerir que participem de uma turma de iniciantes.
– Claro! – Respondeu David bastante animado.
– Só uma coisa. – Disse Karine. Eu posso levar emprestada uma das revistas que eu vi sobre a mesinha da antessala?
– Claro, fique com ela.
Karine levou a revista para casa e, naquela mesma noite, terminou de ler o texto que a intrigou.
A parte final dizia o seguinte:
“As pessoas são colocadas em nossos caminhos de formas diversas, às vezes como um esposo ou como um irmão ou mesmo um amigo e ainda como um filho ou outras maneiras diversas e, se há algo que impeça que este encontro se realize, são provocadas profundas cicatrizes em nossa existência que terão reflexos por toda esta vida e, até, em existências futuras. Se o impedimento for causado por nós mesmos, de forma voluntária, a angústia daquele que foi impedido de nos encontrar vai se manifestar temporariamente, de forma repetida e inequívoca ainda nesta existência.”
Karine fechou os olhos e deixou que as grossas lágrimas que insistiam em sair lavassem o seu rosto deixando exposto todo o seu sentimento de culpa.
Agora ela sabia quem era a menininha loura que lhe estendia a mão.
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FALTOU UM BEIJO NO ROSTO.
Zé do Carmo era um jovem do interior que morava na cidade grande em uma casa de estudante. Era uma residência mantida pelo governo do estado para rapazes pobres que queriam se aventurar na capital para estudar e que não tinham condições de se manter.
Na casa faltava tudo. O desjejum era mirradinho. Somente café com pão e, uma vez ou outra um pouco de leite e manteiga, mas isso era muito raro.
O rapaz estava concluindo os estudos do segundo grau e preparava-se para o vestibular de Engenharia Civil, um sonho raro para os jovens da pequena Leviatã, cidadezinha de pouco mais de quinze mil habitantes onde, talvez, as únicas pessoas formadas fossem o padre e o delegado, que era chamado de doutor porque senão ele se ofendia.
Todos do lugarejo sabiam que Zé do Carmo, filho de Dona Benta e seu Carlito tinha ido pra capital pra estudar. Não sabiam bem o que, mas a grande maioria achava que ele iria voltar sem nem mesmo ter concluído o segundo grau, afinal, outros jovens já tinham se aventurado daquela forma e não tinha dado em nada.
Mas Zé do Carmo era diferente. Persistente e duro na queda, não entregava os pontos por causa de uma fomezinha qualquer. Lá na sua Leviatã ele nunca tinha passado fome, os pais eram pequenos agricultores, mas sempre tinha alguma coisa pra comer, nem que fosse um pouco de quiabo com jerimum cozido ou só um pouco de feijão mesmo, mas tinha.
Na cidade grande as coisas eram muito mais difíceis. Zé do Carmo fazia bico à noite, lavando carros na porta de um cinema grande, bonito, que havia lá perto da Casa do Estudante e era como ele conseguia algum dinheiro pra comprar algo pra comer, mas também, era o mais básico possível. Pelo menos um PF, como diziam, no almoço ou um pão com mortadela pro jantar. Mas havia dias mesmo que nem pra isso ele conseguia. Afinal ele tinha que estudar para o vestibular e, por isso, não dava pra ir todo dia trabalhar de flanelinha na porta do cinema. Havia também algumas pessoas que não pagavam nada e, não raro, o rapaz ia pra casa com fome porque guardava o pouco que tinha conseguido pra garantir o almoço do dia seguinte.
Mas tinha Ary Carlos e Lucinha que estudavam no mesmo colégio. Ele era o amigo do peito que gostava de Zé do Carmo porque ele era estudioso e sempre quebrava seu galho quando chegavam as vésperas das provas de Matemática e Física. Zé do Carmo era, disparado, o melhor aluno da turma em todas as matérias, especialmente nessas duas e Lucinha… bem, Lucinha era um sonho pra Zé do Carmo. Nutria por ela um amor platônico porque nem em sonho tinha coragem de se aproximar daquela menina faceira, cheirosa (ele sabia disso porque gostava de ficar por perto dela pra sentir seu cheiro) e, ainda por cima, estudiosa. Como ela se vestia bem, Zé do Carmo achava que ela era rica e, para poder chegar perto dela precisaria, no mínimo, ser aprovado no vestibular de engenharia. Aí, quem sabe, teria alguma chance?
Ary Carlos, sabendo da situação difícil de Zé do Carmo e, também, querendo puxar o saco do amigo, de vez em quando o convidava pra almoçar na casa dele, principalmente nos fins de semana. Ele morava num sítio, um pouco afastado, em uma bela casa, confortável, com muitas árvores frutíferas que Zé do Carmo aproveitava para encher a sacola nos domingos e levar pra Casa do Estudante, afinal, fruta para ele era um luxo. Ele gostava de jaca porque era grande e dava pra muitos dias, o único problema era que o cheiro da fruta chamava a atenção dos outros colegas de quarto e Zé do Carmo não se negava a dividir com eles, por isso, acabava logo.
Lucinha era muito bonita, cabelos castanhos, rostinho de boneca e usava uns óculos que lhe davam um charme muito especial. Zé do Carmo estava apaixonado pela menina.
Veio o exame de vestibular e, ao final, Zé do Carmo foi aprovado para Engenharia Civil, Ary foi reprovado para Direito e a bela e charmosa Lucinha conseguiu aprovação em Medicina. Que bela médica ela seria! Sonhava Zé do Carmo.
Na comemoração pela aprovação, Zé do Carmo ousou se aproximar de Lucinha e, timidamente, para cumprimentá-la, tentou dar-lhe um beijo no rosto, como fazem as pessoas normalmente.
Que decepção!
A menina virou o rosto e não permitiu que Zé do Carmo a beijasse. Não deu qualquer satisfação, simplesmente se afastou dali e foi conversar com outros amigos, “talvez do seu mesmo nível social” – pensou Zé do Carmo.
Aquilo foi um golpe rude para o rapaz, mas a alegria de ter sido aprovado no vestibular de Engenharia Civil era maior.
No dia seguinte, Zé do Carmo sacolejava em um ônibus velho com destino à sua pequena e querida Leviatã. Precisava contar pessoalmente para os pais porque, celular ele não tinha e, mesmo que tivesse, os pais não sabiam nem o que era isso.
Cinco anos se passaram e Zé do Carmo era agora um engenheiro civil. Tinha estagiado em uma empresa que construía grandes edifícios residenciais e, tão logo se formou, foi contratado.
Em pouco tempo o rapaz se firmou como um dos melhores engenheiros daquela cidade. Agora que ganhava bem, tinha dado uma casa confortável para os pais, lá em Leviatã mesmo, pois eles não queriam se mudar pra capital e já tinha comprado, também, um carro e um apartamento para si.
Mas faltava uma coisa: Lucinha. Onde ela estaria?
Os anos se passaram e Zé do Carmo finalmente se apaixonou por Cláudia, uma médica que comprara um apartamento em um dos prédios que a empresa onde trabalhava Zé do Carmo tinha construído e, no qual, ele trabalhara como engenheiro residente.
Zé do Carmo se casou com Cláudia e tiveram dois filhos: Ana Paula e Antônio Carlos (homenagem ao pai). A vida sorria para o casal e, em breve, tinham um belo patrimônio, uma vida organizada e desfrutavam de um excelente ambiente na sociedade local.
– Gostaria de convidar uma amiga para jantar conosco uma hora dessas. Disse Cláudia para Zé do Carmo.
– Claro, querida, fique à vontade. Quando você quiser. Eu conheço?
– É uma colega médica, que trabalha comigo lá no hospital. É uma ótima pessoa, mas, coitada, não tem dado sorte na vida conjugal. Acabou de se separar do segundo marido. Foi um casamento conturbado. Parece que o marido bebia muito e, dizem, chegou até a agredi-la. Não teve filhos em nenhum dos dois relacionamentos. Ela é mais ou menos da sua idade, uns trinta e cinco anos eu diria, mas, como eu disse, a vida foi dura para com ela e, hoje, ela aparenta ter bem mais.
– Que pena! Mas, como eu lhe disse, convide-a quando quiser.
De fato, no sábado seguinte, o casal se preparava para receber a convidada em casa para um jantar. Como a médica era muito amiga de sua esposa, Zé do Carmo tinha programado que jantaria com elas e as crianças e, depois, encontraria alguma coisa para distrair os meninos para deixa-las à vontade para conversarem. Afinal, pensava, sua esposa era uma pessoa bastante equilibrada e, se fossem conselhos que estivessem faltando à amiga, certamente Cláudia poderia dá-los.
Sábado, nove horas da noite, a campainha do belo apartamento de Cláudia e Zé do Carmo tocou.
Zé do Carmo distraía-se com as crianças com um vídeo game e, da sala de estar, não viu quem estava entrando.
– Querido quero lhe apresentar a minha amiga – disse Cláudia.
Zé do Carmo olhou para a visitante e, ao contrário do que ele mesmo poderia imaginar, não se emocionou, seu coração não acelerou, viu apenas uma pobre mulher, sofrida, maltratada pela vida com um olhar triste, o rosto levemente enrubescido porque o tinha reconhecido, que lhe disse:
– Muito prazer, Lúcia, e ofereceu-lhe o rosto para um beijo.
O CAÇADOR
Flaviano era famoso no Estado do Amapá. Caçador exímio, nunca voltava pra casa de mãos vazias. Veados, pacas, tatus, antas, jacarés, patos selvagens, qualquer bicho que quisesse ele matava com extrema perícia e facilidade.
Ele era tão bom no que fazia que aceitava encomendas. As pessoas lhe encomendavam caças específicas.
– Seu Flaviano, eu tô com vontade de comer uma paca neste fim de semana. Quanto é? – perguntava seu Alarico, o dono da taberna.
Flaviano dava o preço e Alarico já podia contar como certo o seu almoço de domingo: Paca na brasa.
Além disso, Flaviano era também um excelente pescador. Costumava aventurar-se pelo rio Amazonas e seus afluentes. Pescava grandes espécimes e, de vez em quando, tartarugas gigantes, algumas delas centenárias. Gostava de se deixar levar pelas águas do rio Amazonas até aonde ele achasse que era o ponto certo.
Homem prendado e corajoso, embrenhava-se na selva amazônica, quase sempre sozinho, algumas vezes a pé, outras na sua velha caminhonete ano 1981.
Não tinha medo de onça, sucuri ou qualquer outro animal selvagem da mata. Sabia preparar armadilhas e tocaias como ninguém e, além de tudo, atirava bem tanto com seu rifle quanto com sua carabina semiautomática. Possuía os mais modernos equipamentos de pesca. Usava varas, molinetes, redes, tarrafas. Tinha um feeling muito especial para escolher o equipamento adequado para cada local e situação.
Sua preferência, no entanto, era a caça. Sentia um enorme prazer em ver a presa abatida por um disparo certeiro. Possuía extrema habilidade para retirar os couros e tratá-los. Faturava um bom dinheiro com toda essa atividade. Afinal, isso era o que ele fazia na vida.
Ultimamente, Flaviano vinha adquirindo um prazer especial pela caça aos felinos. Não só porque o couro dos animais possuía um alto valor de mercado, mas também, pelo grande desafio que sentia quando tinha que caçar uma onça pintada, essa, em especial.
Era início do mês de março e as chuvas de verão no norte do Brasil eram intensas. Tão fortes que parecia que “alguém tinha derramado um baldo d’água lá de cima”. Essa expressão Flaviano gostava de usar, em tom de brincadeira, para justificar as pesadas chuvas que caíam na região naquela época.
Flaviano se preparava para mais uma caçada. Alguém lhe tinha encomendado um veado, mas ele ia aproveitar para caçar uma onça pintada cujos rastros ele tinha visto na semana passada.
Com aquela chuvarada toda que caía, tanto era fácil seguir os rastros dos bichos se os visse pouco depois de serem feitos como eram fáceis de serem perdidos na próxima chuva. O caçador, no entanto, era esperto e experiente. Não iria perder a oportunidade de abater aquele felino. Ele queria isso a qualquer custo.
De fato, em pouco tempo, o homem já estava com a sua encomenda pronta – tinha abatido um grande veado em poucas horas de caçada – e agora, tocaiava-se para esperar a onça pintada que certamente apareceria para beber água às margens de um igarapé.
O sujeito, habilmente, pendurou a carcaça do veado. Assim, o cheiro de sangue atrairia mais facilmente a sua presa.
Ele sabia exatamente onde e quando esperar e, em pouco tempo, o maior de todos os felinos da América do Sul apareceu. Só que ele, ou melhor, ela, não estava sozinha. Tratava-se de uma onça-fêmea que, acompanhada de seus três filhotes dirigia-se ao igarapé e, ao sentir o cheiro do sangue do veado, parou um segundo para avaliar onde estaria aquela provável presa.
Flaviano viu os filhotes. Contou-os. Percebeu que eram três. Constatou que não teriam mais que alguns poucos meses de idade e que, sozinhos, suas chances de sobrevivência eram mínimas no meio daquela selva. Mesmo assim, ele apertou o gatilho.
O animal tombou, imediatamente, com o certeiro tiro no olho esquerdo. Flaviano mirou ali para não estragar o couro.
O homem desceu da árvore e, mesmo com os três filhotes próximos ao corpo da mãe como quem chora e não acredita no que estava acontecendo, expulsou-os. Rapidamente tirou o couro do felino e abandonou a carcaça para os predadores. Armou uma tipoia e amarrou o corpo do veado. Antes de sumirem na mata os três filhotes pararam como que dizendo adeus a sua mãe e deram um último olhar, só que não em direção à mãe abatida, mas para Flaviano. O homem olhou e percebeu que eram um pequeno macho e duas fêmeas.
Em questão de segundos Flaviano já não se lembrava mais dos filhotes e do fato de que, matando a mãe, ele tinha quase que certamente matado os filhotes também. O que interessava naquele momento era o dinheiro que ele iria receber pelo produto de sua caçada e as estórias que teria para contar nos bares das esquinas da cidade.
O tempo passou e o caçador continuava com sua rotina de caça e pesca. Vivia feliz porque era respeitado pela comunidade. Era quase um herói.
Quatro anos mais tarde, novamente no mês de março, épocas das fortes chuvas, Flaviano se embrenhava na mata para mais uma caçada. Desta vez o objetivo eram animais pequenos: tatus, pacas, jabutis, etc. Tudo encomenda.
Mesmo um homem experiente como Flaviano, às vezes, comete erros, afinal, ninguém é perfeito e, devido ao intenso temporal que caía na selva, o homem não viu um buraco na trilha de pacas e enfiou o pé. A dor foi intensa e, além de quebrar o tornozelo, o caçador ficou com o pé direito preso em uma raiz, de tal forma que não conseguia tirar por mais esforço que fizesse. Passou uma noite inteira assim. Afinal, pensou, aquela chuva em breve passaria e ele facilmente acenderia uma fogueira mesmo sem poder se movimentar e, dessa forma, chamaria a atenção de alguém.
O dia amanheceu mas a chuva não amainou, pelo contrário, intensificou-se mais ainda. Parecia um dilúvio.
O tornozelo estava terrivelmente inchado. Se já era difícil e penoso soltar o pé, agora, com o inchaço, era, realmente, impossível.
O dia inteiro passou e a próxima noite também e a chuva não parava.
Com o nascer do terceiro dia, finalmente, o sol apareceu, mas ele não veio sozinho.
Calmamente, como quem não quer espantar a presa, três onças aproximaram-se de Flaviano. Eram um macho e duas fêmeas. Não fizeram nenhum barulho e, quando o caçador percebeu, os três animais estavam em sua frente. Começaram a rodeá-lo. Pareciam analisar a situação. Olhavam-no nos olhos até que o macho se aproximou e pareceu cheirá-lo. Sentiu o seu odor que, talvez, o lembrasse de fatos acontecidos há alguns anos.
As armas do caçador tinham escapado de suas mãos quando do acidente e da dor repentina e, agora, estavam em um ponto inalcançável por ele, por isso, o sujeito estava à mercê dos três felinos.
Os três animais sentaram-se à frente do caçador e apenas esperaram.
O homem estava apavorado. Seu tornozelo havia infeccionado. Ele sentia febre e começava a delirar. Os animais mantinham-se impassíveis como quem espera que alguma coisa aconteça.
De fato, três dias depois, as três onças pintadas retiraram-se calmamente, da mesma forma como chegaram.
Com o pé preso sob as raízes de uma gigantesca sumaúma havia um homem morto. Ele não tinha nenhum ferimento no corpo a não ser um tornozelo quebrado que infeccionara e provocara a morte por envenenamento da corrente sanguínea.
O ÚLTIMO APITO
O trem de Mutim para Vila Branca fazia o mesmo percurso há 45 anos. A velha locomotiva rangia de tudo quanto era jeito pra vencer a Serra do Urubu e, quando chegava ao topo, soltava o seu grito de vitória.
O apito da Maria Fumaça não apenas avisava que estava chegando. Também levava alegria de uma cidade para a outra. Quando voltava pra Mutim a coisa era muito mais fácil porque era ladeira abaixo e, bem, assim, tudo quanto era santo ajudava.
Bom mesmo era quando ela vinha fungando, ribanceira acima, soltando aquela fumaça que se via de longe e, vitoriosa, soltava o estridente apito avisando a população que estava chegando.
Trazia tudo quanto que era de bicho: cabrito, carneiro, galinha, pato e peru e produtos da roça como quiabos, macaxeira, jerimum, melancia, coco. Trazia jegue para Nhô Tico pra transportar carga pras minas de ouro da redondeza e gente, sempre vinha muita gente. Era gente pra vender, gente pra comprar, pra trabalhar, pra contratar, enfim, aquele trem trazia não só alegria para o povo de Vila Branca, trazia, também, o progresso e a confiança no futuro. Ele era tudo de bom para a população das duas cidades.
Seu Álvaro era o maquinista do comboio desde o primeiro apito. Todo mundo conhecia o velho de cabeça branca, bigode grosso de pontas empinadas e a bela cabeleira branca que reluzia ao sol. Não tinha um fio de cabelo preto. Eram todos brancos de sabedoria. O rosto, enrugado pelos setenta e cinco anos de vida e quarenta e cinco de felicidade conduzindo a sua locomotiva, traduzia satisfação pura e felicidade plena. Ele adorava aquele trabalho. Se existisse alguém que pudesse se dizer feliz, bem, esse alguém era o velho Álvaro, o maquinista.
Cabedela – era esse o nome estranho que o velho Álvaro tinha dado à sua querida Maria Fumaça. Ninguém sabia a razão de nome tão estranho, nem ele mesmo, mas era assim que todo mundo tratava a velha máquina. E ela parecia entender o carinho e o respeito que o povo daquelas duas cidades tinha por ela. Não reclamava de nada, tudo que queria era que não lhe deixassem faltar lenha pra queimar, afinal, era isso que lhe dava forças pra vencer a poderosa Serra do Urubu, tão majestosa quanto a velha Cabedela. As duas pareciam se respeitar.
A chegada na estação de Vila Branca ou de Mutim, não tinha diferença. Seu Álvaro puxava a cordinha do apito, botava um boné de comandante e ia, todo orgulhoso, vistoriar o desembarque de pessoas, coisas e animais. Terminado tudo aqui, enquanto uma nova carrada era colocada nos seis vagões do comboio ele se dirigia ao café da estação e tomava um pingado, café com leite, mais leite do que café dizia para Jonas, o atendente e proprietário do estabelecimento, na verdade, uma concessão mas que era mais dele do que do governo porque ele já estava ali desde não sei quando.
Seu Álvaro dizia pra todo mundo que queria morrer num momento desses, quando já tivesse descarregado o seu trem, despachado todo mundo e as pessoas estivessem se preparando para uma nova viagem. Seria a apoteose. Morreria ali, no meio do povo e nos braços de sua velha Cabedela, a Maria Fumaça querida que morava em seu coração há quarenta e cinco anos. Para ele, era inconcebível qualquer possibilidade de separação, em vida, daquela máquina velha, tão cansada e feliz quanto ele.
O velho Álvaro tinha um filho chamado Ananias que já trabalhava como “segundo-piloto” na velha Maria Fumaça. Tinha aprendido todo o ofício com seu pai, mas era consciente que só poderia assumir o controle de Cabedela quando o velho fechasse os olhos. Qualquer coisa diferente disso era totalmente impensável, fora de cogitação.
Mas aconteceu!
Inexplicavelmente, veio uma ordem da capital determinando que a linha férrea de Mutim para Vila Branca teria que parar, ou melhor, pra usar os termos bonitos do comunicado: seria descontinuada.
Foi preciso que o professor Lenir explicasse pro seu Álvaro o que significava “ser descontinuada”.
– Mas por quê? – perguntava o incrédulo Álvaro – se está todo mundo feliz. O povo todo gosta da Cabedela!
Ninguém conseguia explicar aquilo.
O fato é que, na segunda-feira, Cabidela parou de fungar e soltar a fumaça preta que de longe alegrava os corações dos mutinenses e dos vilabranquenses.
Mesmo assim, todos os dias, seu Álvaro ia até a estação de Vila Branca pra ver se a sua velha amiga estava “precisando de alguma coisa”. Voltava pra casa triste, cabisbaixo, mas, pelo menos, tinha o consolo de que, no dia seguinte, voltaria e conversaria mais alguns minutos com a sua Cabedela.
Isso também não durou muito.
Um dia, pela manhã, seu Álvaro encontrou Jonas, já de volta, mais triste do que tudo.
– Que foi que houve Jonas? Não vai abrir a lanchonete hoje?
– Vou não, Álvaro. Não posso.
– Não pode porque, sô. O que aconteceu?
– Trancaram o portão da estação com um cadeado deste tamanho, ó! – disse Jonas mostrando o tamanho de um cadeado enorme, desses bem antigos.
– Quem foi que fez essa maldade? – perguntou Álvaro.
– Disseram que foi um funcionário do governo, lá da capital que trancou e foi embora levando a chave com ele. Ele disse que tinha ordens pra fazer assim – explicou Jonas.
O coração do velho Álvaro acelerou e ele apertou o passo pra ver se aquela barbaridade era verdade mesmo.
O homem ficou no portão olhando a sua querida Cabedela, sozinha, abandonada, largada e tão triste quanto ele. Era verdade mesmo. Agora nem conversar com ela ele podia mais.
Álvaro voltou pra sua casa e Jonas resolveu ir embora dali. Ia montar outra lanchonete na estação rodoviária nova que estavam construindo numa cidade vizinha.
O velho Álvaro deixou de sair de casa e, como já era de se esperar, adoeceu. Adoeceu de tristeza, disse o doutor Prado, o único médico do lugar. Sugeriu que os familiares conversassem com ele e que procurassem um jeito de desviar sua atenção para outros assuntos. Mas como? Não havia outro assunto que interessasse ao velho maquinista. Ela só falava em sua Cabedela e o fim triste que deram à pobre coitada. Em nenhum momento se referia a si mesmo.
O filho, Ananias, estava preocupado com o estado de prostração do seu velho pai. Não havia nada que lhe desse alegria e o doutor Prado disse que se continuasse daquele jeito, qualquer hora dessas ele iria ter uma parada do coração.
Ananias não queria isso. Resolveu fazer uma viagem. Disse que iria até a capital pra resolver uns problemas, procurar um trabalho e outras coisas mais. Na verdade ele foi até a sede da Rede Ferroviária Federal fazer um pedido. Era um pedido simples.
Voltou dois dias depois e encontrou o seu velho pai ainda pior. Ananias percebeu que o homem estava dizendo adeus. A tristeza da separação brusca de sua Cabedela era forte demais.
Ananias saiu cedo de casa. Pediu a bênção ao seu velho pai e de sua velha mãe, dona Noca, e saiu.
Duas horas depois houve um movimento de gente na direção da estação de trem. Seu Álvaro já não tinha mais forças pra ir até a janela e por isso não viu a alegria estampada no rosto da população de Vila Branca.
A surpresa foi muito grande, da janela da casa da família de Álvaro dava pra ver a estrada de ferro e foi dali que Noca viu quando a velha Maria Fumaça passou e soltou o seu grito vitorioso, pela última vez, no comando, Ananias.
Dona Noca virou-se pra seu marido e, então, percebeu que ele já não respirava mais, mas seu rosto estampava uma fisionomia plácida, serena e plena de felicidade com um sorriso discreto em seus lábios.
Álvaro tinha ido embora, não sem antes ouvir a voz de sua maior amiga uma última vez. Foi embora, sim, mas foi feliz.
POR CINCO VAQUINHAS
– ÊÊÊÊ boi!
Este era o grito do vaqueiro Josivaldo, às cinco horas daquela manhã fria, enquanto tangia as suas cinco vacas em direção ao caminhão que esperava na frente de sua casinha de madeira. Toda branca, janelas vermelhas e, no peitoril de cada uma delas, um vasinho com algumas margaridas que Jacirema tinha plantado. Cuidava delas com muito carinho e elas correspondiam perfeitamente dada a beleza que apresentavam naquela manhã em que o sol nem tinha nascido direito. Na frente, uma cerca de tábuas brancas, impecavelmente alinhadas, todas da mesma altura, com um portão que dava acesso a um lar humilde, mas feliz.
O dinheiro da venda das vacas já tinha destino certo. Seria pra pagar o doutor que ia fazer o parto de Jacirema, que estava grávida de oito meses do primeiro filho do casal. Seu nome seria Carlos José porque Josivaldo achava bonito e porque ele poderia chamá-lo, carinhosamente, de Cazé, apelido de seu velho pai, vaqueiro como ele, mas que um boi malvado tinha mandado mais cedo para junto de Deus.
Um homem com um imenso chapéu de vaqueiro, alto, sujeito de quase dois metros de altura e um bigode de uns dois dedos de grossura, negros, que caía abaixo das bochechas, era o motorista do caminhão. Jacirema não gostava dele, na verdade, tinha medo dele, pois achava que o sujeito tinha cara de mau e tinha dito para Josivaldo não confiar no tal sujeito do caminhão e que recebesse o dinheiro das vacas adiantado. Seu nome era esquisito. Chamava-se Temístocles, mas era conhecido mesmo era como Temista, jeito caboclo de se pronunciar um nome tão complicado.
Josivaldo chegou ao caminhão tangendo as suas vacas.
– Vamo botar elas pra dentro – disse Temístocles. Ocê sobe lá e puxa as corda passada nos chifre e eu empurro de cá.
A operação consistia em fazer com que as vacas subissem ao caminhão por uma rampa de madeira que tinha sido colocada atrás, apoiada na carroceria do veículo velho.
Subiu a primeira, a segunda e era uma trabalheira danada, o sol já tinha aparecido finalmente e Josivaldo suava às bicas. Ele era um homem pequeno, pouco mais de um metro e sessenta, magrinho, mirradinho, sujeito bom que achava que todo mundo era bom como ele.
– Josivaldo, ocê sobe na boleia mais eu que nós vamos passar no comércio de “nhô” Tonho mode eu pegar o dinheiro pra pagar ocê – disse o bigodudo.
Aquilo não tinha sido o combinado. O acertado era que o sujeito pagaria as vacas, ali mesmo, na hora que elas entrassem no caminhão.
Josivaldo ficou sem ação. Olhou pra Jacirema que, da janela onde estava, não podia ouvir a conversa, mas o seu rosto estampava um ar de preocupação como quem está tendo um pressentimento.
– Muié – gritou Josivaldo – eu vou ali mais “seu” Temista mode pegar o dinheiro. É na casa de nhô Tonho. Vou num pé e “vorto” noutro.
Jacirema arregalou os olhos. Não era possível! Ela tinha tido um sonho ruim naquela noite e, não se lembrava direito do final, mas parecia que o seu Josivaldo saía de casa e não voltava mais. Mas Jacirema não podia fazer nada. Apenas acenou com a mão, triste, como quem se despede, e só pôde dizer: “Vorta logo, home”.
O dia foi passando, deu a hora do almoço e nada de Josivaldo voltar. Jacirema estava muito preocupada. O que poderia fazer? O bucho enorme de mulher prenha de oito meses provocava dores terríveis na coluna e, com os pés inchados daquele jeito ficava até difícil de caminhar.
Felizmente foi passando um rapaz de bicicleta. Todos os chamavam de Cadico. Era pouco mais do que um adolescente e, prestativo, todos do lugarejo gostavam dele. Tinha uma grande cicatriz na testa provocada por um tombo de bicicleta, num dia chuvoso.
– Cadico! – chamou Jacirema.
Cadico chegou, parou a bicicleta e perguntou:
– Que foi Dona Jacirema?
– Cadico, ocê me faz um favor?
– Mas é claro, dona Jacirema. O que é que a senhora quer?
– Quero que ocê vá na casa de nhô Tonho e pergunte pelo Josivaldo, meu marido, que saiu daqui pra lá, inda bem cedinho e num vortô até agora. Pergunta por ele por lá e vorta aqui mode me dar uma resposta.
– Pode deixar – respondeu o prestativo Cadico.
Não demorou nem quarenta minutos e Cadico já estava de volta.
Jacirema continuava na janela, com aquele ar aflito de quem sabe que alguma coisa não está indo bem.
– E então? – perguntou.
– Dona Jacirema, o seu Josivaldo num teve hoje lá não. Nhô Tonho disse que faz é dias que num vê ele.
Pronto! Isso foi o suficiente pra Jacirema se desesperar.
– Valei-me minha Nossa Senhora dos Remédios! Me acuda! O que terá acontecido com meu marido?
Jacirema e Josivaldo eram casados direitinho, tanto no civil quanto no católico. Religiosa, ela não tinha aceitado a proposta de ajuntamento que Josivaldo lhe tinha feito primeiro e disse que com ela, só casando. Foi o que aconteceu. Casaram na paróquia de Santa Gertrudes, que ficava ali mesmo, pertinho da casa de Jacirema e Josivaldo e quem celebrou a cerimônia foi o padre Augustinho, um sacerdote, já bem velhinho, cabeça completamente branca.
Foi dele que Jacirema se lembrou naquela hora de angústia. Pediu para Cadico levá-la na garupa da bicicleta até a casa paroquial. Iria pedir ajuda ao padre Augustinho.
Cadico concordou, mas foi só porque não sabia dizer não pra ninguém.
“Imagine, home! Levar uma muié já quase parindo na garupa de uma bicicleta!! Aquilo era perigoso demais – pensava o rapaz – mas acabou levando Jacirema na garupa até a casa do padre.
– Pois foi isso que aconteceu, “pade” Augustinho, e eu tô morrendo de preocupada. O que é que faço? – perguntou Jacirema ao sacerdote.
– Tá bom – disse o padre. Vamos até a delegacia.
O padre tinha uma camioneta velha que fumaçava mais do que andava. Por onde o veículo passava ficava o cheiro de óleo diesel queimado.
Quando chegaram na delegacia, estranharam o amontoado de gente que cercava o prédio. Alguma coisa tinha acontecido.
O delegado, doutor Sinfrônio José de Souza – homem importante no lugar – quando viu a mulher gestante chegar ficou preocupado. Todos desviavam a vista quando Jacirema buscava alguém para olhar nos olhos.
O delegado recebeu os três – Cadico tinha vindo junto, na carroceria da camioneta com a sua bicicleta – pediu que Jacirema sentasse um pouco, pra descansar, e levou o padre para um canto onde lhe contou o que tinha acontecido.
Logo ali, a uns três quilômetros da casa do casal, alguém encontrou o corpo de Josivaldo com um tiro no coração. Estava jogado na beira da estrada, ainda quente, pois tinha acabado de ser assassinado.
Agora tinham que dar a notícia à pobre mulher.
O delegado, mesmo sabendo que era sua obrigação fazer isso, estava com medo. O padre pediu que Cadico fosse buscar um médico. Ele foi, mas voltou dizendo que o doutor não podia vir pois “tava cuidando de uns doentes lá”.
Quem iria contar pra Jacirema?
Jacirema tinha entendido tudo e o destino decidiu poupar aqueles homens do desconforto de contar-lhe o que tinha acontecido.
A dor tinha sido tão grande que, quando os homens chegaram, encontraram a mulher com a cabeça jogada para trás, no velho banco de madeira, inerte, sem vida. O coração da jovem, machucado pelo barbeiro que provocou a doença de Chagas, não suportou a dor.
Uma voz se fez ouvir: “Temos que salvar a criança”.
Era Cadico, o mais improvável, o menos culto, mas era quem tinha um coração que não sabia dizer não e, ali, na barriga daquela mulher morta, poderia haver uma criança com vida.
– Vamos levar ela pro doutor. Talvez ele possa salvar o menino – disse, com extrema sabedoria, o jovem e bondoso Cadico.
Alguns anos depois, um homem, já com seus trinta anos, com uma grande cicatriz na testa, sentado em uma cadeira de balanço, à tardinha, responde a uma criança que, chegando da escola, lhe diz:
– Benção, pai!
– Deus te abençoe, meu filho Cazé!
UMA MORTE DIGNA
Madalena pousou seu novo avião na frente de sua casa. Era um modelo para duas pessoas, controlado por robô que voava a baixa altitude, apenas para pequenos percursos. Desceu rapidamente com Gabriel, seu filho de quinze anos, que, daquela vez não quis usar a sua própria aeronave preferindo pegar uma carona com a mãe na volta do treinamento de lutas marciais para economizar um pouco de combustível.
Era o ano de 2135 e a vida estava cada vez mais selvagem. Saber se defender era primordial para se manter vivo. Todos praticavam alguma luta para sua defesa pessoal porque, com a extinção da polícia, há cinquenta anos, a vida passou a ser cada um por si.
Tudo era difícil e racionado, especialmente água, comida e combustíveis. O governo usava todo o seu aparato de segurança pública apenas para defender as suas reservas de água e os frequentes ataques de nações clandestinas em busca desse produto fazia com que o mundo todo estivesse em guerra.
Nações foram criadas à revelia da extinta ONU – Organização das Nações Unidas – por absoluta inépcia daquele órgão no que dizia respeito à proteção e à promoção da distribuição de riquezas. A população mundial, por volta de 65 bilhões de habitantes, revoltara-se contra os governos e, agora, muitos países desrespeitavam as fronteiras e as nacionalidades e, simplesmente, invadiam qualquer nação em busca do que mais precisavam: água, comida e combustível.
Era comum verem-se pessoas com tremedeiras nas mãos devido à ingestão de carne humana. Isso era normal.
Qualquer animal poderia se transformar em uma bela refeição. Os gatos e cachorros, extintos há mais de setenta anos, eram os pratos favoritos nos anos 2060 e Madalena os conhecia apenas por fotos e ficava imaginando quão deliciosos deveriam ser aqueles animais assados ao forno ou cozidos em um belo molho de pimenta.
O pequeno avião manobrou sozinho e, após dobrar as asas, agasalhou-se na garagem da casa, ao lado daquele que pertencia a Gabriel. Era preciso estar a postos porque, a qualquer momento, seriam divulgadas as senhas para que as pessoas fossem aos postos de distribuição receber as suas pílulas de hidratação. Eram divulgadas pelos canais exclusivos de TV que cada residência possuía.
Madalena tinha sorte porque tinha conseguido comprar uma casa modular de doze metros quadrados que, com um simples toque no controle remoto se transformava no cômodo que os moradores estavam precisando no momento. E, agora, eles precisavam de uma confortável sala com sofá e TV, tudo embutido nas paredes, é claro, para os quais ela já tinha mandado uma mensagem via internet para que cada objeto estivesse pronto para as suas funções.
Bem a tempo!
Mal se sentaram no sofá e o sinal para que Gabriel usasse o seu receptor, codificador, fosse posicionado de tal modo que somente ele soubesse a sua senha. Nem mesmo a sua mãe poderia saber. Isso, se acontecesse, seria considerado crime de alta traição para com o governo cuja punição era uma só: pena de morte por injeção letal, extração de todos os órgãos importantes do corpo e o restante destinado às indústrias de preparação de enlatados.
A mesma coisa aconteceu com Madalena e, imediatamente, ambos dirigiram-se para os seus respectivos postos para receberem as suas pílulas. Ninguém sabia onde o outro recebia nem quanto recebia. Sabia-se apenas que, à medida que as pessoas iam envelhecendo, a porção de pílulas diminuía, justamente para que a vida não se prolongasse por muitos anos. O mundo não comportava mais idosos e o limite máximo para a existência de qualquer ser humano era trinta e cinco anos. Quando qualquer cidadão atingia essa idade ele se dirigia ao local conhecido como plataforma de extermínio onde o governo dava cabo de sua vida o destinando corretamente o corpo, ou seja, seria transformando-o em alimento.
Por isso, era comum as pessoas decidirem acabar com a própria existência próximo dessa idade porque, assim, poderiam escolher uma morte digna, sem sofrimento, no momento em que queriam e ao lado de quem quisessem. Qualquer farmácia vendia os kits de eutanásia. Não havia limites de idade para as pessoas comprarem, pelo contrário, o governo incentivava os cidadãos a tomarem aquela atitude cada vez mais jovens. Madalena já tinha comprado o seu e também incentivava Gabriel para que não se demorasse muito, até achava uma boa ideia os dois partirem juntos. Quem sabe, assim, o jovem sofreria menos com as condições cada vez piores de sobrevivência!
Gabriel voltava para sua casa com as valiosíssimas pílulas que tinha recebido. Desta vez fora contemplado com uma porção generosa que daria, pelo menos para os próximos dez dias.
Um fato raro!
Com certeza, Madalena não teria conseguido uma porção para mais do que quatro ou cinco dias, o que era comum na idade avançada em que ela já estava, trinta anos.
Dois homens interceptaram o jovem na rua. Queriam as pílulas. O que eles não sabiam era que Gabriel era especialista em vários tipos de lutas marciais e, apenas dois sujeitos, não eram páreo para ele.
Fingindo que iria entregar o precioso pacote aos homens, desferiu, com as próprias mãos, apenas dois golpes fulminantes que perfuraram os pescoços dos adversários causando-lhes morte imediata.
Por um momento Gabriel pensou em levar os dois corpos para sua casa, pois isto poderia significar vários dias de comida fresca, mas, assim, estaria cometendo um crime inafiançável e imprescritível punido com a pena de morte. Matar não era crime, mas ocultar os cadáveres, sim.
O rapaz deixou os dois infelizes ali mesmo e voltou para casa.
Ao chegar, notou que a residência estava em um profundo silêncio. O avião de sua mãe estava na garagem, ao lado do seu. A casa estava sob o formato de quartos de dormir e Gabriel decidiu bater na porta daquele que pertencia a sua mãe. Como ela não respondeu, ele apenas empurrou a porta que estava aberta. Em sua cama, Madalena jazia morta e, em suas mãos, havia um bilhete de despedida no qual ela dizia que estava cada vez mais difícil conseguir as pílulas e que, daquela vez, o governo lhe informara que ela receberia apenas uma a cada três dias o que seria insuficiente para lhe aplacar a sede, sendo assim, sabiamente, tomou a decisão de partir.
Gabriel leu o bilhete e achou que a mãe tomou a decisão correta. Aproximou das pupilas de sua mãe, agora já sem brilho o seu SK-4200, aparelho de comunicação de última geração. A imagem fornecia os dados como causa mortis, local do corpo, sexo e idade do cadáver, além da completa identificação, é claro e, dentro de cinco minutos, o avião-tumba do governo desceu, verticalmente, em frente à residência de Madalena para recolher o corpo e enviá-lo para as indústrias de processamento de carne.
A vida prosseguia para Gabriel, mas ele também não tinha vontade de ir muito longe.
VIDA DE CAMINHONEIRO
Três horas da manhã. Um caminhão corta as estradas do interior da Bahia. Ao volante, José Antônio, há mais de trinta horas sem dormir, precisa chegar ao seu destino para entregar a sua carga dentro do prazo previsto. Para isso, não há tempo para dormir.
As luzes contrárias focam em um caminhão a mais de cento e vinte Km/h. Agora já são seis horas e o movimento na estrada começa a aumentar. Terá que reduzir a velocidade, mas, felizmente, seu destino já está próximo.
O engarrafamento infernal nas proximidades das cidades de grande e médio porte são as únicas coisas que aborrecem José Antônio. Ele já está acostumado a ficar sem dormir, sem comer, a ser assaltado, a ter o caminhão quebrado devido ao péssimo estado de conservação de algumas estradas, mas, com os engarrafamentos, não. Esse é o seu grande tormento.
Finalmente, por volta das dez horas, o caminhão carregado de motores elétricos estaciona na porta da fábrica. José Antônio desce do veículo, apresenta os documentos ao porteiro e recebe a autorização para entrar. Agora falta pouco para ele poder dormir algumas horas, se tiver sono, porque ele tomou uma dose extra de “arrebites” para conseguir ficar “ligado”.
Terminou o descarregamento e José Antônio, finalmente, começa a sentir um pouco de cansaço. Já tem em mente o posto de gasolina onde ele poderá estacionar sua carreta, tomar um banho, comer alguma coisa, tomar uma ou duas pingas e, finalmente, tirar um bom sono.
O celular tocou.
– Alô!
– Zé? – pergunta uma voz do outro lado da linha.
– Ele mesmo. – responde uma voz cansada do lado de cá.
– Você já descarregou?
– Terminei agora mesmo.
– Você precisa vir agora pra cá porque o patrão tem uma carga pra você levar pro Rio Grande do Sul. E é urgente.
Sem pensar direito, José Antônio responde.
– Tô indo.
O motorista, usando de toda a sua perícia, conduz o gigante de aço para a periferia onde fica a central de cargas da empresa para a qual presta serviço. O caminhão é seu e ele firmou um contrato com aquela empresa para atendê-la o mais rápido possível. Pagam bem e pagam em dia. Não lhe cabe questionar prazos, percursos ou distâncias.
No caminho, tem que passar por vielas e curvas fechadas onde “é impossível” que um caminhão como aquele passe. Mas ele passa.
José Antônio já esqueceu que estava cansado.
Enquanto carregam o seu caminhão ele toma mais alguns comprimidos e, em pouco tempo já está pronto para retomar a estrada. Fome ele não sente há muito tempo.
Desta vez é uma carga de produtos semi-industrializados, polipropileno, que será usado como insumo em uma grande empresa química do sul do Brasil. A viagem será longa, mas, pra ele, já não faz diferença. São quase três mil quilômetros que são percorridos em pouco mais de trinta e três horas com dois motoristas. José Antônio terá que fazê-lo em vinte e cinco horas sozinho.
Os arrebites são o seu repouso, seu alimento e sua diversão. Com eles as estradas passam mais rápido, não se sente o tempo e não há cansaço. Sim, na vida de José Antônio, não há espaço para essas coisas, afinal, a prestação do caminhão é pesada e ele precisa pagar em dia além de manter a família que ele não vê há mais de quarenta dias.
Mais uma vez, as luzes das estradas passam por ele em uma velocidade intensa.
De fato, o motorista consegue vencer a distância no tempo recorde de vinte e quatro horas e trinta minutos, cronometrados. José Antônio só parou para abastecer o caminhão. O que importa é que a carga chegou a tempo e que ele, agora, com este pagamento, está quase completando o valor da prestação do veículo.
Mais uma vez a estória se repete e o celular de José Antônio toca de novo. Mais uma vez ele não consegue dizer não.
Passa no lugar de sempre, compra mais algumas pílulas para abastecer o seu estoque que já estava quase no fim e parte para mais uma viagem. Agora, terá que ir para o norte do Brasil, Belém do Pará.
Tratava-se de um carregamento de MDF, matéria prima para a indústria moveleira que já deveria ter chegado lá há três dias. O cliente já estava furioso, ameaçando processar a transportadora e, agora, cabia a José Antônio fazer o milagre de percorrer três mil, oitocentos e cinquenta e quatro quilômetros em, no máximo, trinta e duas horas. Humanamente impossível – disseram os companheiros – mas não para José Antônio. Afinal, depois daquela viagem, ele finalmente teria o dinheiro para pagar a prestação do caminhão, sobrariam uns trocados e poderia, enfim, ir para casa ver Maria José e os meninos e descansar uns dias.
Hamilton era um amigo de José Antônio de longas datas. Vendo que o companheiro estava em um péssimo estado, perguntou-lhe:
– Zé, faz quanto tempo que você não dorme?
– Não se preocupe, meu chapa, tô tomando os bichinhos que me garantem – disse José Antônio referindo-se aos arrebites.
– Não senhor – retrucou Hamilton. Você tá um caco e eu não vou deixar você partir para uma viagem doida como essa sem dormir. Aproveita que o posto tá silencioso e tira um cochilo.
Tanta foi a insistência do amigo que José Antônio resolveu atendê-lo. A cabine do caminhão, confortável, acomodou o velho caminhoneiro e toda a sua preocupação com o valor da prestação do veículo.
Só que José Antônio não conseguia dormir de tanto arrebite que ele tinha tomado. Estava completamente ligado.
Olhou para a carreta do amigo e viu que ele estava dormindo. Não teve dúvidas. Foi até o banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho e concordou que estava com ar de cansado mesmo, mas era só esta viagem e depois ele iria descansar.
Ligou o motor de seu caminhão e saiu de fininho. Em pouco tempo devorava as estradas do sul rumo ao norte.
Depois de mais de vinte horas dirigindo sem parar, em uma curva, uma outra carreta cruzou com ele em alta velocidade e com os faróis altos.
José Antônio ficou cego por um segundo e foi o suficiente para ele sair da estrada. Ninguém saberia dizer quantas vezes o caminhão capotou, o fato era que, finalmente, após dias e dias dirigindo sem comer e sem dormir, José Antônio, finalmente, adormeceu.
FLOR DE LÓTUS
Aldo conheceu Emília na Faculdade. Ambos cursavam Física Nuclear em uma grande universidade e se destacavam entre os demais alunos. Costumavam estudar juntos, passear juntos, etc. Eram dois grandes amigos. Na verdade, nenhum dos dois jamais quis qualquer coisa com o outro além da amizade. Respeitavam-se mutuamente tanto por suas inteligências, quanto pelo caráter. Ambos tinham opiniões coincidentes em muitos aspectos, exceto um: Aldo não acreditava na mínima possibilidade de existência de vida extraterrestre, enquanto Emília pensava exatamente o contrário. Nunca chegaram a discutir seriamente por isso, mas sempre que conversavam a respeito gerava-se um pequeno mal estar entre ambos.
Aldo até evitava tocar no tema, mas, curiosamente, este era um dos assuntos preferidos por Emília. Sabia tudo sobre OVNI’s, UFOLOGIA, aparições suspeitas no céu, áreas militares secretas, testes que não eram divulgados, enfim, qualquer assunto a respeito de vida extraterrestre interessava à moça.
Após mais um dia de aula, sentados à sombra de uma árvore no Campus Universitário, Emília puxou novamente o assunto.
– Estive lendo um artigo em uma conceituada revista científica que garante que existem seres de outros planetas, que eles estão entre nós há centenas de anos estudando nosso comportamento, nossas fraquezas e pontos fortes – disse Emília.
– Eu gostaria de saber como é que esses pseudocientistas sabem essas coisas. Todas as teorias que foram levantadas até agora não tiveram qualquer comprovação – retrucou Aldo.
– Pois saiba que esse artigo a que me refiro afirma, também, que eles têm poderes que nós consideramos sobrenaturais.
– Ora, Emília, não vá querer me dizer que eles voam, são imortais ou coisas do gênero – falou com total desconfiança o jovem cientista.
– Pois uma das coisas que o autor do artigo afirma é que eles se quiserem, e quando quiserem, podem vencer a força da gravidade e superar fenômenos como descargas elétricas, levantar pesadas cargas, etc.
– Bem. Já vi que sobre este assunto nós não vamos chegar nunca a lugar nenhum. Que tal falarmos de seus planos após a formatura? – perguntou Aldo encerrando o assunto.
Estavam prestes a concluírem o curso de Física Nuclear e todos os formandos já tinham destino certo. As maiores empresas de energia nuclear, ou Governos de Nações consideradas desenvolvidas, enfim, todas as grandes corporações da área nuclear em todo o planeta tinham interesses naqueles jovens.
Aldo e Emília, afinal, iriam se separar. Ele iria para um projeto de construção dos mais modernos submarinos por propulsão nuclear e ela fora contratada por um grande Instituto de Pesquisa Nuclear, ambos em países diferentes.
Eram os últimos dias de aula e os jovens formandos organizavam festas de despedidas e o grande evento que seria a formatura.
No baile de formatura, Emília, uma loura de olhos verdes da cor de esmeralda, destacava-se por sua beleza e elegância. Usava um vestido longo, preto e irradiava alegria por onde passava contaminando a todos.
Dançava com o seu par preferido, seu amigo Aldo, chamando a atenção de todos. Muitos achavam que os dois nutriam um namoro às escondidas o que não era verdade. No começo Aldo até tentou iniciar um romance com a jovem, mas foi educadamente repelido. Todos os rapazes da turma tentaram, mas nenhum obteve êxito.
Naquela noite, Emília deu-lhe um presente de despedida. Era uma peça em ouro que representava a metade de uma flor de lótus branca e explicou-lhe que era uma flor aquática que, em alguns países, significava o nascimento divino, o crescimento espiritual e a pureza do coração e da mente e que, no momento oportuno ela lhe daria a outra metade. A branca, em especial, significava o espírito, a mente e a pureza.
O tempo passou, os amigos se despediram e cada um seguiu o seu destino. Aldo e Emília já não se viam mais, exceto pelos canais de comunicação via internet. Falavam-se todos os dias.
Aldo já era muito conceituado na empresa em que trabalhava e, em breve, lançaria ao mar, um novo submarino por cujo projeto ele era um dos responsáveis.
Tratava-se de uma maravilhosa máquina de guerra. Todos a consideravam perfeita, com autonomia praticamente infinita, alcance de suas armas jamais atingido por nenhuma outra embarcação, enfim, era quase a perfeição.
Chegou o dia de lançamento ao mar e Aldo estava a bordo de sua criação. Sentia-se extremamente orgulhoso e feliz.
O equipamento mergulhou e dirigiu-se às profundezas do oceano. Mergulhado nas gélidas águas do pacífico o submarino parecia absoluto. Incrivelmente silencioso, espaçoso e confortável, abrigava também uma carga mortífera com as mais modernas armas de guerra já concebidas pelo homem.
Em um dado momento, no entanto, o impensável aconteceu. Uma explosão sacudiu a embarcação de ponta a ponta e, em poucos minutos a tripulação estava à deriva, ao sabor do oceano. O oxigênio em breve acabaria e o risco de contaminação por radiação pelo urânio combustível era iminente.
Parecia que estavam todos condenados à morte certa.
A falta de oxigênio fez com que todos a bordo desmaiassem. A morte aconteceria em questão de minutos. Repentinamente, algo aconteceu. A embarcação, totalmente sem comando, começou a flutuar e, quando chegou à superfície a escotilha se abriu. Um vulto adentrou a embarcação e verificou que todos ainda estavam vivos. Tomou as providências técnicas para isolar a radiação e, aproximando-se de Aldo, depositou em sua mão a metade de uma flor de lótus branca, em ouro.
Dentro de alguns minutos os tripulantes começaram a despertar e a se dirigirem para o exterior. Aldo, ainda atordoado, retirou do bolso a outra metade da flor de lótus e viu que se encaixava perfeitamente com a que encontrou em sua mão quando despertou. Algo no céu lhe chamou a atenção. Um objeto grande, brilhando intensamente e que pairava sobre as suas cabeças, resplandecia no céu daquela tarde, quase noite. Deu umas voltas sobre o submarino e sua assustada tripulação e partiu, repentinamente, a uma velocidade jamais vista por qualquer habitante da terra.
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A SALVAÇÃO
Eduardo Andrada era um próspero homem de negócios. Tinha um faro aguçado para a bolsa de valores e investia muito forte. Nunca perdia.
Ao contrário do que lhe recomendavam os especialistas, ele não acreditava “nessa estória de diversificar os investimentos”.
– Sou bom é na Bolsa de Valores! Sei quando uma ação vai subir ou vai cair! Sinto no ar. – Gabava-se o investidor.
De fato, o homem já acumulava uma riqueza considerável conseguida toda nesse tipo de aplicações. Os amigos costumavam consultá-lo para saber se valia a pena investir em empresa A ou B.
Eduardo não se fazia de rogado e orientava a todos. Era, sob esse aspecto, um homem bom, não queria só para si. Principalmente porque, perto do que ele investia, o investimento dos outros era uma ninharia.
Eduardo era casado com Dona Maria Gorete, uma mulher muito religiosa, devota de Nossa Senhora das Dores e não faltava uma missa aos domingos. Levava sempre o marido e os dois filhos Antônio José e Maria das Graças. Na verdade, o marido ia somente para acompanhar a esposa por quem tinha verdadeira adoração. Amava a família mais do que tudo no mundo.
Maria Gorete tinha dado a Eduardo uma medalha com a imagem de Nossa Senhora das Dores e pedido ao marido que jamais a tirasse do pescoço. A imagem era feita em aço puro, tinha cerca de dois centímetros de diâmetro, era bem pesada, fora abençoada pelo bispo local e a mulher acreditava verdadeiramente no poder que ela teria.
Eduardo não acreditava naquilo, mas, para não contrariar a esposa, decidiu usá-la.
Procurava dar sempre o melhor que podia à esposa e aos filhos. Passeios maravilhosos, roupas sempre da última moda, embora Maria Gorete não fizesse tanta questão disso. Os filhos estudavam nos melhores colégios da cidade e, naqueles dias do ano de 1929, não era qualquer família que tinha um carro. Eduardo tinha dois.
O jovem investidor, milionário, não tinha do que reclamar, afinal, tinha uma mulher bonita e que o amava muito. Dois filhos maravilhosos, estudiosos e obedientes que só lhe davam orgulho. A vida estava voando em nuvens brandas, céu de brigadeiro.
Então, sem que ninguém esperasse, veio o CRASH. A bolsa de Nova York quebrou e arrastou para a miséria milhares de pessoas.
O mundo todo se viu, repentinamente, perdido. Nada do que se esperava dos negócios se concretizou. Nem mesmo Eduardo, com seu faro inigualável, infalível até então, escapou.
Em vinte e quatro horas a fortuna do homem virou fumaça.
Em todos os lugares havia casos de suicídio. Os antigos ricos não suportavam o fato de que tinham virado pobres de uma hora para outra.
Eduardo teve que se desfazer dos carros, da bela casa em que moravam, tirou os filhos do colégio caríssimo em que estudavam e, mesmo assim, não tinha dinheiro pra mais nada.
Estava perdido, não havia salvação! – Pensava o ex- investidor.
– O que é que eu vou fazer da minha vida? – Dizia para si mesmo.
Resolveu procurar os amigos que o procuravam nos velhos e bons tempos. Afinal sempre dera bons conselhos a todos, ajudou todo mundo nas decisões. Certamente, agora que ele precisava, não iriam lhe faltar.
O primeiro que ele procurou foi Hamilton, um empresário que, ao contrário de Eduardo, sempre procurou diversificar os investimentos. Tinha uma fábrica de sapatos, de médio porte e perdera muito dinheiro na bolsa, mas, sobrara-lhe a própria fábrica que, agora, permitia que ele sobrevivesse mais modestamente, é claro, mas dava para levar a vida sem desespero.
Hamilton não quis nem mesmo conversar com Eduardo.
Procurou André, um fazendeiro que procurava Eduardo com muita frequência em busca de seus conselhos e… nada. Ele também não podia fazer nada por ele.
Um após os outros os antigos amigos foram se afastando e, agora, desesperado, Eduardo não tinha outra opção na vida a não ser … tirar a própria vida.
Não suportava chegar em casa e ver o outrora alegre e rico ambiente familiar transformado em um ambiente de tristeza e desesperança e a culpa, achava, era unicamente dele.
Por que ele não investiu em outras coisas. Poderia ter sido fazendeiro como André ou ter alguma fábrica como Hamilton, talvez uma rede de farmácias, mas, não, ele achava que o mundo dos negócios era apenas a Bolsa de Valores e, agora, não tinha mais nada na vida a não ser dívidas, dor e a tristeza de ver que o seu mundo virou fumaça de uma hora para outra.
Estava em casa sozinho. Na gaveta um revolver calibre 38. Um tiro seria o suficiente para acabar com todos os seus problemas. Duraria apenas um segundo. Talvez nem sentisse dor.
Naquele momento ele não pensava mais na esposa, nem nos filhos nem no trauma que o seu gesto tresloucado provocaria na família. Tudo o que ele queria era desaparecer. O mundo não lhe interessava mais.
Apontou o revólver para o peito e disparou. O homem caiu ao lado da escrivaninha onde ele guardava a arma fatídica.
Mais tarde, Maria Gorete chegou com as crianças. Tinha ido apanhá-las no colégio público onde, agora, estudavam. Estava radiante porque tinha recebido uma notícia maravilhosa e estava ansiosa para dividi-la com o marido.
Chamou-o e, como não respondesse, resolveu entrar no pequeno escritório onde o marido costumava se refugiar ultimamente.
Encontrou-o desfalecido, mas ainda estava vivo.
Imediatamente chamou uma ambulância que o transportou para o hospital.
Eduardo escapou milagrosamente. A bala disparada contra o seu peito atingiu em cheio a forte medalha de Nossas Senhoras das Dores com a qual esposa o tinha presenteado. O homem desmaiou com o impacto sobre o coração, mas a bala ricocheteou e cravou-se na parede do escritório.
Após algumas horas, finalmente, Eduardo pode receber visitas, mas estava profundamente deprimido. Não queria mais viver.
– Eduardo, querido, tenho uma grande notícia para lhe dar – disse-lhe a esposa
Eduardo apenas olhou para a mulher, sem acreditar que ela tivesse alguma novidade que fosse capaz de alterar a situação de penúria em que viviam.
– Sabe aquele meu tio-avô, solteiro que mora em Minas Gerais?
Eduardo balançou a cabeça afirmativamente.
– Lamentavelmente ele faleceu mas deixou a fazenda com milhares de cabeças de gado para nós.
Eduardo olhou para a escrivaninha ao lado da cama, estendeu a mão, pegou a medalha de N. S. das Dores bastante amassada pelo disparo, levou-a à boca e deu-lhe um beijo.
Olhou para a esposa e não teve vergonha que ela visse duas grossas lágrimas que desciam pelo seu rosto.
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UMA FOTO EM PRETO E BRANCO
Era o ano de 1980.
Na faculdade de medicina de uma cidade do norte do Brasil dois jovens se encontram.
A afinidade entre os dois é muito grande e, logo começa uma amizade que em pouco tempo se transforma em algo muito mais profundo, mais sério e que prometia ser eterno. Quem os visse, certamente diria que aqueles dois vieram ao mundo para se completarem.
Naquela época, os recursos de fotografia eram parcos e só se poderia saber que uma foto tinha ficado boa quando se a revelasse. A jovem, que se chamava Isaura, presenteou o namorado com uma foto em branco preto, tamanho 5 x 7, em que se destacava o seu belo e simples rosto de menina pobre, sem maquiagem. No verso ela pedia ao jovem, que se chamava Olavo, que a guardasse porque enquanto a mantivesse consigo, ela o acompanharia onde quer que ambos estivessem.
Era uma jura de amor eterno.
A jovem Isaura gostava de presentear o namorado com balas de hortelã, um presente barato, comprado em qualquer esquina, mas que se tornara sua marca registrada. Sempre que o rapaz conseguia uma vitória, fosse uma boa nota em uma prova, a aprovação no fim do ano, enfim, nos grandes e pequenos acontecimentos, Isaura o presenteava com balas de hortelã.
Filhos de pais de classe média baixa, moradores de um bairro pobre, perceberam a necessidade de se ajudarem mutuamente e o amor que brotou entre os dois levou-os ao altar.
Tão logo se formaram em medicina, profissão que ambos, coincidentemente, almejavam desde a infância, casaram-se e resolveram praticá-la em uma das muitas cidades pobres do interior do norte do Brasil.
A união deu-lhes um filho, cujo nome, o pai, orgulhosamente, já tinha escolhido há muitos anos no qual tinha todo o apoio de sua Isaura. O menino deveria chamar-se Elias. Era algo pessoal, do pai.
As coisas, no entanto, não saíram como os jovens previram. O menino Elias nasceu prematuramente, com apenas seis meses de gestação e Isaura teve imensas complicações no parto vindo a falecer.
Antes de morrer, no entanto, pediu ao marido que cuidasse do menino com todo o amor que ele pudesse ter na vida.
Olavo viu-se, então, aos vinte e oito anos, viúvo com um filho prematuro de seis meses que precisava de cuidados médicos intensos, morando em uma cidade do interior. Não via outra alternativa senão esperar que o menino adquirisse as condições mínimas de sobrevivência para voltar para a sua cidade onde poderia ter ajuda de seus parentes.
Naquele tempo os pais do jovem médico já tinham morrido e as coisas estavam muito mais difíceis.
Era preciso transpor muitos obstáculos.
Apesar de todos os percalços o menino crescia com saúde e desenvoltura.
Em um certo momento, Olavo achou que deveria casar-se novamente. Afinal, um homem precisa de uma mulher, pensava.
De fato, casou-se com Samara achando que, finalmente, poderia construir uma nova família e dar uma segunda mãe a seu Elias.
Ledo engano!
Samara não gostava do menino e o maltratava aos olhos de todos com espancamentos e agressões verbais.
A situação piorou mais ainda quando vieram os filhos do novo casal. O pai não sabia o que fazer diante de tal situação, mas tinha prometido a Isaura que cuidaria do filho em todos os momentos de sua vida.
Secretamente, quando se sentia só e deprimido, chateado com a situação em que se encontrava o menino, olhava a foto da jovem Isaura e as suas forças e esperanças se renovavam.
O menino cresceu e, agora, rapaz, decidiu seguir a mesma profissão do pai. Tornara-se médico obstetra. Tinha decidido ajudar as crianças a virem ao mundo de forma humana e confortável e encarava como um verdadeiro desafio quando uma delas nascia de forma prematura.
Conhecia toda a sua estória e via-se naquelas crianças que sequer podiam pedir-lhe ajuda. Não precisavam fazê-lo, pois ele estava ali para isso.
Finalmente, Olavo conseguiu ter a paz com que sempre sonhara ao ver o filho bem-sucedido na vida, mas o destino sempre guarda surpresas para todos.
Uma noite, ao sair de um hospital onde tinha ajudado uma menina a nascer, o jovem Elias dirigia seu carro por uma avenida movimentada da cidade. Era sábado e muitos jovens estavam saindo das baladas, quando um automóvel, dirigido por um rapaz completamente embriagado, atingiu, em cheio, o carro do jovem médico.
Às cinco horas da manhã Olavo atendeu o telefone. O hospital avisava-o que o estado clínico do seu filho era crítico. Era preciso submetê-lo a uma delicada cirurgia para retirar um coágulo do cérebro e não havia um neurocirurgião disponível.
Olavo não pensou duas vezes e se dirigiu ao hospital o mais rápido que pode.
Médico conhecido na cidade, também obstetra como o filho, foi recebido pelos colegas que atenderam a Elias. Lamentavelmente nada poderiam fazer, pois nenhum deles, não sendo neurocirurgiões, se arriscaria a uma cirurgia tão delicada.
– Eu faço. – Disse o Olavo. Vamos cuidar disso imediatamente.
É fato que os médicos não gostam de atender os seus parentes próximos, mas, naquele momento, Olavo não pensou em outra coisa a não ser salvar a vida de seu filho.
O estado clínico do rapaz, apesar de alguns ossos fraturados inspirava cuidados apenas pelo coágulo que se formara no cérebro. Era imperativo retirá-lo imediatamente.
Os demais médicos entenderam que ali, muito mais do que um médico reconhecidamente brilhante, estava um pai disposto a tudo para salvar a vida de seu filho.
Doze horas de cirurgia. Todos estavam cansados. O Dr. Olavo, que jamais fizera uma intervenção como aquela, estava exausto, mas a cirurgia tivera êxito.
Estava consciente de que o filho estava fora de perigo, então, retirou-se para seu consultório e, sozinho, retirou o retrato de sua Isaura da gaveta, olhou-o intensamente, e chorou.
Após algum tempo, já recuperado, decidiu descansar um pouco. O médico adormeceu ali mesmo, e, após algumas horas, acordou.
Lembrou-se de tudo que tinha ocorrido e já se preparava para visitar o filho que estava na UTI quando reparou em um pequeno pacote que estava sobre a mesa.
Curioso, abriu-o e viu que havia, ali, algumas balas de hortelã.
KARINE
Karine engravidou aos dezoito anos.
Moça de classe média alta, bastante esclarecida, entendeu que, naquela idade, a gravidez iria atrapalhar seriamente os seus planos de se formar em economia, fazer um mestrado no exterior e conseguir um bom emprego em uma multinacional. Dessa forma, a moça não teve dúvidas e, sem sequer dar conhecimento aos seus pais, procurou um meio de abortar, o que conseguiu com relativa facilidade.
De fato, a vida prosseguiu de acordo com os planos traçados pela jovem e, aos vinte e cinco anos, já estava concluindo um mestrado em economia em uma grande universidade no exterior.
Foi aí que ela conheceu Robert, um jovem economista, mestrando como ela. Entre os dois desenvolvia-se uma química muito boa e, logo, começaram um relacionamento que culminou com a segunda gravidez de Karine.
Mas isso ainda não estava nos planos da jovem e, novamente, ela deu um jeito de provocar o aborto. Desta vez, porém, ela demorou um pouco mais e já dava até para saber o sexo do bebê: seria uma menina. Isso não foi obstáculo para Karine que levou seu plano até o fim.
De volta ao país, a jovem e preparada economista não teve dificuldades para conseguir um excelente emprego com fortes possibilidades de uma transferência para o exterior. E ela, em pouco tempo, conseguiu isso.
Karine era uma moça de muitos amores. Bonita, inteligente, socialmente bem posicionada, excelente condição financeira, não tinha nenhuma dificuldade nessa área, além disso, a sua vida profissional progredia a olhos vistos. O sucesso era companheiro frequente da bela jovem.
Um belo dia, Karine resolveu casar-se e, como tudo para ela era fácil na vida, também dessa vez não teve dificuldade de encontrar um marido que atendesse às suas expectativas. Logo encontrou David, um economista como ela, com quem se casou.
Karine era uma mulher saudável assim como David, seu marido e, em menos de um ano, nasceu Karl, seu primeiro filho e, dois anos depois, veio Arthur, o segundo.
O parto de Arthur foi um pouco complicado e o médico que assistiu à jovem teve que fazer uma intervenção cirúrgica que a impossibilitaria de ter outros filhos.
Dessa forma, o casal Karine e David ficou com dois filhos. David estava feliz com o resultado, mas não Karine, ela queria uma menina.
O tempo foi passando e, alguns anos depois, ela começou a sonhar com uma menininha lourinha com os cabelos cacheados que lhe estendia a mão como quem estivesse pedindo ajuda. Ela sempre acordava angustiada com aquele sonho que, para ela, não fazia nenhum sentido.
Esse fato começou a se repetir com muita frequência e Karine resolveu contar ao marido que não viu nenhum problema e achou que a esposa estava tendo pesadelos em função do excesso de atividades, talvez, afinal, a moça trabalhava o dia inteiro na empresa e, como mãe e esposa dedicada que era, procurava adivinhar os desejos do marido e de seus dois filhos. De fato, a jornada de Karine era muito pesada, mas ela não reclamava disso. Acostumara-se desde cedo a perseguir com empenho os seus objetivos e ela tinha decidido que seria feliz no casamento fazendo com que, tanto seu marido como as crianças fossem, também, felizes. Faria a sua parte independente de qualquer coisa.
Realmente a moça era muito dedicada e incansável. Fazia questão de acompanhar os estudos das crianças procurando, sempre que possível, deixá-los ou apanhá-los na escola. Discutia os problemas do trabalho com o marido, já que ambos eram funcionários da mesma empresa e, ao que parecia, não havia nenhum problema com que se preocupar e, muito menos, que pudessem lhe provocar tantos “pesadelos”, como David tinha chamado os seus incômodos sonhos.
E a situação se repetia, cada vez mais amiúde. A menina hora aparecia chorando, hora aparecia muito triste e, sempre, estendia a mãozinha com quem pede amparo.
Essa situação já estava começando a mexer com a saúde de Karine até que, por sugestão, do próprio marido, resolveu procurar ajuda.
A princípio, procurou uma psicóloga muito bem recomendada pelos amigos mais íntimos. As sessões de análise prosseguiram meses a fio e a situação de Karine não mudava em nada. Os sonhos vinham, agora, quase todas as noites. A moça já não dormia direito. Algumas vezes acordava aos prantos e não sabia explicar porque chorava.
Resolveu abandonar as sessões de análise com a psicóloga e procurar um psiquiatra que lhe receitou calmantes e alguns medicamentos “tarja preta”, os ansiolíticos que, infelizmente, só fizeram piorar o estado clínico e mental da moça.
Ela já não sabia o que fazer. David via a sua vida familiar desmoronar e, se sentia impotente diante do quadro de ansiedade e tristeza da esposa que se agravava a cada dia.
Alguém lhe falou da teoria kardecista, o espiritismo.
Por que não tentar?
Afinal, a ciência não tinha resolvido a questão. O estado psíquico de sua esposa não melhorava, ao contrário, a situação estava ficando quase sem controle.
David conversou com a esposa e lhe explicou do que se tratava.
– Que bobagem é essa David? Imagina se eu vou acreditar em curandeirismo e outras coisas até piores!
– Não se trata de curandeirismo, meu amor, mas de uma religião que está se desenvolvendo há muitos anos. Muita gente busca ajuda ali e tem resolvido seus problemas. Vamos tentar, e, se você não gostar, nós simplesmente abandonamos. O que acha?
Com muita relutância, afinal, Karine concordou. Não tinha mesmo nada a perder, pensou ela.
Alguns dias depois, David chegou com a notícia de que tinha conseguido uma permissão para frequentar um Centro Espírita muito bem recomendado na cidade.
Karine concordou em ir.
A desconfiança era extrema no primeiro dia que o casal foi ao Centro Espírita. As pessoas recebiam-nos com extrema cordialidade procurando deixá-los à vontade, mas Karine não estava se sentindo bem. David, ao contrário, gostou do ambiente e procurava encorajar a esposa.
Uma senhora muito simpática recebeu-os e pediu-lhes que esperassem alguns minutos em uma pequena, porém confortável salinha onde havia algumas revistas sobre a doutrina espírita em uma mesinha de centro.
Karine, enquanto aguardava, pegou uma e começou a folhear. Passava as páginas quase que desapercebidamente quando o título de um artigo lhe chamou a atenção. Dizia: “Vínculos entre vidas”.
Sem nem mesmo saber porquê começou a ler o texto que se referia a pessoas que, em função de fatos ocorridos em vidas passadas, tem que se reencontrar nesta a fim de resolverem determinados assuntos que não foram muito bem equacionados em outras existências. Estava entrando na parte que falava de fatos que impediam que esses encontros se realizassem quando foi chamada para uma entrevista com alguém.
Em outra sala simples, porém confortavelmente mobiliada e com uma iluminação discreta, um senhor de cabelos grisalhos, atrás de uma escrivaninha, os esperava.
Procurou saber qual era o problema de Karine e ela lhe falou dos sonhos que, a princípio ocorriam espaçadamente, mas que, agora, aconteciam quase todas as noites. Falou-lhe da menininha loura que lhe estendia a mãozinha como que pedindo ajuda e do seu desespero ao acordar.
Thomas – este era o nome do entrevistador – de forma muito serena perguntou-lhe sobre o seu passado, como tinha sido a sua vida até então e quais os fatos mais importantes.
Karine narrou-lhe a sua trajetória contando minuciosamente a sua vida acadêmica – que era a parte de que ela mais gostava – mas omitiu os dois abortos. Na verdade, ela quase não se lembrava mais ou, talvez, não quisesse lembrá-los.
– Bem, disse Thomas, gostaria que vocês ficassem conosco, se quiserem, e participassem dos grupos de estudo que nós costumamos formar. Como esta é a primeira vez que vem a um Centro Espírita vou lhes sugerir que participem de uma turma de iniciantes.
– Claro! – Respondeu David bastante animado.
– Só uma coisa. – Disse Karine. Eu posso levar emprestada uma das revistas que eu vi sobre a mesinha da antessala?
– Claro, fique com ela.
Karine levou a revista para casa e, naquela mesma noite, terminou de ler o texto que a intrigou.
A parte final dizia o seguinte:
“As pessoas são colocadas em nossos caminhos de formas diversas, às vezes como um esposo ou como um irmão ou mesmo um amigo e ainda como um filho ou outras maneiras diversas e, se há algo que impeça que este encontro se realize, são provocadas profundas cicatrizes em nossa existência que terão reflexos por toda esta vida e, até, em existências futuras. Se o impedimento for causado por nós mesmos, de forma voluntária, a angústia daquele que foi impedido de nos encontrar vai se manifestar temporariamente, de forma repetida e inequívoca ainda nesta existência.”
Karine fechou os olhos e deixou que as grossas lágrimas que insistiam em sair lavassem o seu rosto deixando exposto todo o seu sentimento de culpa.
Agora ela sabia quem era a menininha loura que lhe estendia a mão.
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